Artigo: Ética e Advocacia Pro Bono

quinta-feira, 22 de julho de 2004 às 03:17

Brasília,22/07/2004 - Artigo do membro da Comissão Nacional dos Direitos Humanos do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, professor da Universidade Federal do Piauí e Defensor Público, também no Piauí, Roberto Gonçalves de Freitas Filho:

“Em seu percurso pela face da terra, a humanidade maneja os bens da vida. Com eles satisfaz as suas necessidades de subsistência e consumo. Esse processo resulta numa movimentação de bens e recursos que vem caracterizar o comércio “lato sensu”.

Inerente ao comércio é a noção do ganho, vale dizer, do lucro. Uma contrapartida nesse cenário é a idéia do prejuízo. O comércio significa movimentação dos bens, segundo o interesse dos adquirentes e alienantes. Fenômeno típico na atividade comercial é a acumulação e as suas conseqüências. De fato, a acumulação e a escassez (a safra e a entressafra) são elementos inafastáveis no jogo comercial. Eles fazem aquela que é uma das grandes leis da economia - a Lei da Oferta e da Procura. O problema surge quando o ganho se torna desmedido, quando a acumulação se torna de tal monta que implica necessariamente numa escassez igualmente monstruosa.

O confronto entre quem tem em demasia e os que quase não tem leva a humanidade a profundas reflexões. A Religião, a Filosofia, o Direito e mais modernamente a Economia e as Ciências Sociais consomem muito de seus estudos nessa matéria.

Tamanha preocupação científica reflete um incômodo na alma humana ante o sofrimento imposto aos desprovidos de fortuna. Sendo um ser ético, o homem se angustia com a dor de seu semelhante.

Mais que lamuriar o quadro de sofrimento, a humanidade busca elementos de resgate da condição humana esmagada pela insuficiência econômica. Não poucas tem sido as tentativas de ação.

Duas grandes linhas pretendem orientar a ação. A primeira, oficial, repousa na capacidade que deve ter o Estado, como regulador da vida social, de intervir por meio de seus instrumentos corrigindo as distorções; a segunda, é fundada na solidariedade que existe entre os seres humanos.

No plano jurídico, dentre as ações fundadas na solidariedade aparece, com destaque especial nos dias atuais, a advocacia pro-bono.

A preocupação com os destinos de muitos seres humanos quando seus interesses hão de se submeter ao controle legal do Estado, tem levado advogados a ofertar parte de seus serviços, de maneira voluntária, em favor desses necessitados.

O exercício da atividade pro-bono constitui louvável dedicação de profissionais da advocacia em favor de interesses jurídicos e humanitários.

Nesse sentido, está a merecer todos os encômios. Inegavelmente, vários profissionais assumem encargos complicados e até mesmo penosos no desempenho da advocacia pro-bono. Nessas circunstâncias, muitas vezes, a única recompensa vem a ser a alegria estampada no rosto do beneficiário, a manter acesa na alma do advogado a crença inabalável na força do Direito como elemento de harmonização da vida em comum e promotor da Justiça.

Indo além da advocacia individual, quer no âmbito do Escritório, quer no volume dos favorecidos, a advocacia “pro-bono” vem alcançando novas dimensões, com a criação de verdadeiras corporações de advogados e atenção a causas coletivas com grande repercussão social.

Há que se dar o devido destaque aos esforços de resgate da condição feminina (com o combate à violência doméstica) e várias outras atividades que contam com o providencial apoio do sistema “pro-bono”.

Dotado de livre-arbítrio o ser humano tem a permanente opção de conduzir-se pelos caminhos da ética ou de desviar-se em procedimentos condenáveis de exploração e ganância. Aliás, cumpre lembrar que foi exatamente o processo acumulativo exacerbado e, por isso mesmo, excludente que criou a indignação e rebeldia que fez surgir, dentre outras reações, o próprio movimento “pro-bono”.

Numa escala mais elevada da delinqüência social, o ser humano não apenas subtrai o patrimônio alheio, mas invade até a esfera não-patrimonial, subvertendo ou invertendo conceitos, alterando imagens e perspectivas estabelecidas.

Num grau mais avançado de desvio de conduta, o ser humano pode transmitir uma imagem falsa sobre a sua personalidade, ou sobre a de outros, com o sacrifício da honra e da dignidade de vítimas muitas vezes indefesas.

Tanto o interesse patrimonial, quanto o pessoal, podem marcar essa linha de desvio.

O conceito e o renome merecidamente adquiridos pelos que, honesta e dedicadamente, atuam na advocacia “pro-bono” atiçam a inveja de aproveitadores de todos os matizes.

O esforço decorrente da preocupação com a sorte dos semelhantes tem a denominação de filantropia. A credibilidade social de que desfrutam todos os filantropos, atraiu desde a mais remota antiguidade espertalhões para dela tentarem tirar proveito.

Já a Bíblia Sagrada narra o episódio de Simão, o Mago, que realizava prodígios. Ao aproximar-se dos apóstolos e vendo os seus feitos, propôs pagar aos mesmos por seus poderes. Desde então, chama-se de simonia à tentativa de negociar milagres.

Eis o surgimento de aproveitadores que pretendem ser confundidos com os beneméritos para disso conseguir alguma vantagem.

Apresentando o objetivo meritório da filantropia, que tranqüiliza a todos quanto à pureza e licitude da atividade, sem o menor interesse lucrativo, invoca-se o argumento de que existem custos a serem enfrentados. Para fazer face a esses gastos, angariam-se donativos, auxílios, etc. tanto da esfera privada quanto da pública.

A sabedoria popular, numa expressão jocosa e bem eficiente na descrição, a essa conduta denominou de pilantropia.

Em reportagem sobre os desvios econômicos que se fazem sob a invocação de atividades filantrópicas, notadamente nas áreas de educação e saúde, o jornalista Josias de Sousa, demonstra a mecânica de operação desse sistema perverso. Na verdade, sob a forma de isenções e incentivos fiscais, a pretensa atividade filantrópica serve de pretexto para que ocorra verdadeira locupletação por parte dos supostos “benfeitores”.

Tenha-se em mente que os desvios efetuados nessa linha de ação são mais difíceis de controle, já que pela “renúncia fiscal” o dinheiro não ingressa no tesouro, sendo por isso menos perceptível.

Urge, no resgate e preservação do conceito daqueles que efetivamente praticam a filantropia, que se eliminem as confusões que somente beneficiam aos aproveitadores.

Há que se ter em mente que não apenas o elemento financeiro proporciona desvios na solidariedade prestada aos semelhantes.

A vaidade humana, muitas vezes invejosa do reconhecimento e consideração de que são objeto os verdadeiros filantropos, leva algumas pessoas a cometerem atos com a aparência de filantropia, mas que nada guardem desse intento.

Um grande empresário do Rio de Janeiro realizou, com toda a divulgação, uma festa beneficente. Os convidados deveriam contribuir com donativos a instituições de caridade. Resumo da festa: os donativos somavam oitenta mil reais, o empresário organizador, previa que alcançariam trezentos mil reais com outras doações que estavam sendo encaminhadas. A festa foi feita ao custo de seiscentos mil reais. Ou seja, gastou-se na festa o dobro do que se arrecadou para benefício dos carentes(se as doações tiverem se concretizado).

Existe nesse caso um elemento de exibicionismo que colide com o interesse altruístico que governa - ou deve governar - as ações em prol dos necessitados.

O próprio Cristo já determinava o sistema de realização de obras de caridade ao proclamar que a mão esquerda não deveria saber o que a direita fizesse, numa inequívoca censura ao exibicionismo em tais práticas.

Essa publicidade em torno da benemerência, na maioria dos casos está a serviço de um interesse subalterno. Pode ser uma vaidade extremada; a construção de uma imagem política ou mesmo interesse comercial.

O desejo de notoriedade e a ânsia pela aparição pública, levam algumas pessoas a cometerem o ridículo ou o desvio da falsa benemerência - ou ambos. Nesses casos, a ação serve à vaidade do agente e não ao objetivo anunciado.

O escritor Luis Fernando Veríssimo com a sua verve peculiar, criou a figura das “socialites socialistas”, que personificam com muita propriedade o tipo apontado. Para essas a caridade era tão-somente um modismo.

O que dizer nesses dias de fome-zero, da doação ao programa, da coleira com pedras preciosas de uma cachorrinha?

O uso político da caridade é uma distorção que invade as nossas práticas eleitorais colocando o destinatário da “benfeitoria” na condição de “cabo eleitoral”, direta ou indiretamente.

Na maneira direta, a título de “gratidão” o cidadão é conclamado a votar e a pedir votos em favor de seu “benfeitor”. Na modalidade indireta, o drama do agraciado é exposto sem o menor respeito à sua intimidade e ao seu sofrimento, buscando-se, num processo de marketing eleitoral, construir a imagem de generoso àquele que concedeu o benefício.

Vê-se que a caridade pode dar benefícios de ordem publicitária a quem a pratica. Nisso se percebe que a imagem que pode ser construída em função desse elemento pode ser altamente positiva. Temos então a caridade como um grande instrumento de marketing, o que já havia sido recriminado nos evangelhos.

Um grande exemplo do que pode ser a abordagem caritativa no marketing é demonstrado na reportagem “Publicidade aposta em temas sociais” , publicada na Seção Gerência do Jornal do Commercio (Caderno B-7;25/10/2001). Dentre outras coisas, ali se afirma: “Mais que gerar impacto junto aos consumidores, as campanhas publicitárias que retratam o mundo real, muitas vezes distante da perfeição ao universo povoado por top models, funcionam como um eficiente canal para aumentar as vendas.”

A estratégia de marketing adotada, segundo informa o publicitário responsável pela “campanha” “tem o poder de conquistar a simpatia dos consumidores”.

Mais adiante, o publicitário informa a linha de propaganda: “A preocupação com o social é cada vez maior. Justamente por isso as áreas de marketing adequaram suas estratégias publicitárias ao que quer o mercado. Nada mais natural”.

Agora não mais a figura deslumbrada e doidivanas das socialites socialistas, mas um estruturado planejamento comercial da solidariedade, como um modismo de estação a ser explorado em favor da competitividade comercial.

Resumindo, a reportagem elenca as vantagens dessa “linha publicitária”, na seguinte ordem: 1) Gera discussões em torno da marca; 2) A empresa rapidamente ganha destaque na mídia; 3) chama a atenção dos consumidores para o produto; 4) Conquista a simpatia de alguns nichos de mercado; 5) Retrata um mundo real e não um de ficção.

Eis, sem nenhuma dúvida, o momento em que o interesse comercial usurpa a atividade dos voluntários e filantropos. O que seria ação solidária, vira estratégia de marketing. De fato, no resumo das vantagens dessa, digamos, “publicidade social”, percebe-se que em cinco (05) vantagens apontadas somente uma, justamente a última, tem algo a ver com a conscientização para os problemas sociais, todas as antecedentes buscam construir uma imagem empresarial à custa da exploração de uma causa social.

Em artigo sob o título “Ética é um bom negócio nas empresas”, Carlos Vinícuis Maluly faz ilustrativa análise do aproveitamento comercial da idéia de ética. Numa frase, ele resume: “ética não é produto, mas vende”.

Após desenvolver os fatores que constituiriam uma atuação ética no plano empresarial, o artigo informa um dado valioso: “Um exemplo interessante sobre a importância do tema em questão é de que no mercado de capitais, em 5 anos, os preços das ações das empresas com um comportamento social responsável foi 50% por cento melhor do que a média do mercado, segundo apontou recentemente, o Dow Jones Sustainability Index.”

O artigo condena os que tratam a referência ética apenas como um “modismo”, o que importa “ipso facto” na constatação de que essa conduta é presente.

Causa espécie a repentina conversão de tantas pessoas às causas sociais. Muitas dessas ações, marcadas pelo voluntariado curiosamente somente se fazem à custa da vinculação do nome do “voluntário” à atividade caritativa.

Muitos dos que recentemente descobriram o sofrimento dos semelhantes somente querem ajudar se criarem a sua própria ong, que geralmente tem o seu nome ou a sua figura em destaque.

Essas novas vocações para a solidariedade dificilmente se engajam em atividades historicamente ligadas à prática da filantropia, como vg. as Santas-Casa de Misericórdia, as Apae’s, etc., nas quais o nome do filantropo fica imperceptível ao longo da ação.

Paradoxalmente, grandes conglomerados empresariais que lançam campanhas publicitárias conclamando a sociedade para a pratica da filantropia criam obstáculos e impedimentos (cercas, holofotes, etc.) para que mendigos durmam nas marquises e degraus de seus prédios, ao abrigo do frio da noite.

Vê-se que a distorção da publicidade, para construção da imagem, pode - e muitas vezes ocorre - ser produzida para através da renovação da imagem garantir-se lucros econômicos, não apenas para a satisfação da vaidade.

Urge que se construam mecanismos que salvem os verdadeiros voluntários da inaceitável e descabida suspeita de participarem de operações dissimuladas de conquista de notoriedade. O joio não pode suplantar o trigo.

Não se pode, por temor de eventuais desvios, postar-se contra o esforço solidário. A desconfiança não pode ser o móvel da postura social em face dos que atuem em favor dos necessitados.

Há que se ter cautela na condenação dos que eventualmente, de algum modo, tenham de divulgar os seus atos caritativos. Urge ter em mente que o mesmo Cristo que exigia o anonimato nas obras de caridade, ao identificar-se com os “pequeninos”, reclamava“eu estava doente e na prisão, e vocês não me foram visitar”.

De fato, é impossível alguém realizar a caridade da visita aos presos e enfermos, sem aparecer. Na verdade, é com a sua presença, real e perceptível, que o visitante conforta aquele que sofre os males da prisão e da doença. Vê-se que a visita não pode deixar de ser entendida como uma exceção à regra bíblica do anonimato. Donde se vê que até as regras divinas comportam as exceções, não havendo lugar para um rigorismo excessivo na disciplina da atividade caritativa.

É imperativa a ação oficial no trato dos interesses dos carentes. Nesse sentido, o Estado, conquanto conte com o sempre bem-vindo auxílio dos filantropos, não pode quedar-se inerte e permitir que os interesses de tantos fiquem à mercê da caridade de outrem.

Ostentando os indecentes níveis de desigualdades sociais que apresenta, o Brasil não pode negacear a implantação de sua Defensoria Pública nos termos e moldes previstos em seu ordenamento constitucional, vale dizer com o status efetivo de função essencial à justiça.

A negligência oficial tem criado enormes danos à ordem jurídica a à crença no Direito por parte de muitos necessitados. De modo mais perceptível, temos a atuação penal. A esse respeito, assim falei no voto, como Revisor no processo (0037/22002) já referido: “O grande exemplo dessa distorção é o sistema carcerário. Nele inúmeros presos sem recursos econômicos mofam nos cárceres com benefícios não solicitados, aliando-se, por sua completa desesperança, àqueles que, sem direito a benefícios penais, somente tem na fuga uma chance de liberdade.

O Estado, sempre negligente no que pertine à Defensoria Pública, tem como política oficial para o caso a atividade dos ‘mutirões’, nessas horas o esforço de advogados de boa-vontade - os mesmos advogados que hoje são execrados como defensores de bandidos - tenta suprir a omissão estatal.

É inaceitável que a política pública de execução penal nesse País que seletivamente prende pobres tenha como grande alicerce para a defesa dos carentes eventuais espasmos de solidariedade.

Os versos do poeta Cazuza são definitivos: “Dia sim, dia não, vou vivendo sem um arranhão da caridade de quem me detesta”.

Imaginemo-nos com os nossos interesses na dependência da caridade de quem nos deteste”.

Estabelecida em conformidade com o mandamento legal, a Defensoria Pública além da óbvia função de efetivar a ação do Estado em favor dos carentes, o que não é pouca coisa, ainda serve de paradigma e modelo a nortear a ação de quantos individualmente ou em organismos queiram atuar juridicamente em benefício dos necessitados.

A Defensoria materializa a ação oficial, assegurando à cidadania que o Estado desempenha a sua atividade. Desse modo, estabelece a perspectiva pública no trato dos interesses dos carentes. O conjunto de prerrogativas, o corpo de servidores selecionado por concurso, a continuidade e independência de ação, tudo atua para que a prestação de serviço aos carentes seja verdadeiramente de boa qualidade. Esses elementos implicam em que os mecanismos de ação filantrópica haverão de buscar os mesmos níveis de excelência em seu desempenho.

A presença da Defensoria Pública como referencial permite que se tracem linhas mais seguras na separação dos que atuam no plano da filantropia, daqueles que agem no plano da “pilantropia”.

Vindo a ser o grande instrumento operacional a permitir a separação entre o joio e o trigo.

A Defensoria Pública surge assim como o elemento fundamental a assegurar a tranqüilidade de atuação de todos os voluntários, permitindo a certeza de que o seu desempenho tenha como grande móvel a solidariedade e a impedir que a malícia e a maledicência lancem as terríveis sombras da dúvida sobre a seriedade de seu esforço e sua atuação, servindo na preservação de seu conceito e de sua credibilidade”.