Artigo do presidente: A defesa do Quinto Constitucional
O artigo "A defesa do Quinto Constitucional" é de autoria do presidente nacional da OAB, Marcus Vinicius Furtado Coêlho.
O denominado Quinto é a garantia expressa da Constituição de recrutamento e seleção de um quinto dos membros dos Tribunais dentre os advogados e membros do Ministério Público, guardando coerência com a definição de indispensabilidade e essencialidade ao Judiciário conferida a estas carreiras pela Carta Federal. Muitas vozes se opõem a esta democrática forma de acesso ao Poder Judiciário. Eis a necessária defesa do instituto.
O Judiciário exerce uma das funções do poder do Estado, que é uno. O exercício do poder deve ter em mente o critério da legitimidade. Verificar a legitimidade do quinto constitucional é a abordagem suficiente para demonstrar a sua adequação. Os magistrados oriundos do quinto possuem a marca da nomeação a partir de vários filtros e, principalmente, são escolhidos pelo povo, por seu representante. No regime democrático, vigorante o princípio majoritário, não é estranho, antes é natural, o acesso ao poder por designação popular.
O povo ao eleger o mandatário, assim o está escolhendo para exercer o poder, em seu nome. O Chefe do Executivo, quando efetua a competência de nomear o membro do Tribunal, representa a sociedade. O mesmo em relação ao Senado, quando sabatina os indicados ao STJ. O critério da maioria social é o prevalente nos regimes democráticos. A contenção do abuso de poder nas eleições e a ampliação do nível de consciência e participação da sociedade na definição dos rumos políticos da nação, certamente farão gerar uma cultura pelo controle popular, nos escrutínios eleitorais, no que se refere às indicações ao Judiciário feitas pelos mandatários do povo.
O julgador oriundo do quinto constitucional ultrapassa diversos filtros. O concurso público ou exame de ordem para ingresso na carreira respectiva, auferindo a capacidade técnico-jurídica. O preenchimento do critério temporal, sendo exigido dez anos na carreira, assegurando experiência e sabedoria. A escolha pelos órgãos de representação das respectivas classes – a OAB e o Colégio de Procuradores indicam uma lista sêxtupla. A seleção pelo Tribunal dos mais adequados à prestação jurisdicional – formulando lista tríplice. Por fim, a indicação pelo Chefe do Poder Executivo, enquanto representante do povo, exercendo a constitucional delegação social. O Desembargador do quinto é, deste modo, oriundo da categoria, que empresta seus melhores quadros; selecionado pelo Tribunal, que apresenta os mais indicados; e escolhido pela sociedade, por intermédio de seus representantes.
A mesma Constituição que legitima o quinto constitucional, torna possível o exercício do Poder do Estado, denominado Judiciário, por pessoas não indicadas pelo povo, mas aprovadas em concurso público – art. 93, I. A Constituição priorizou o critério mérito ao de representação popular, no ingresso de cargo de juiz de primeiro grau, isso porque, nesta seara há um evidente predomínio técnico- jurídico da função. Óbvio que todo sistema necessita de homens para pô-lo em prática. A sociedade humana possui falhas e desvios. A existência de desvios, entretanto, não autoriza o fim do sistema. Caso contrário, o próprio Poder Judiciário haveria de ser extinto, diante das inúmeras denuncias de desvios de conduta de seus membros.
O acesso aos Tribunais para os membros da carreira é feito por critérios de antiguidade e merecimento, alternadamente. O fato de ser o mais antigo significa que é o mais indicado? O merecimento é mesmo auferido com critérios objetivos? Os membros dos Tribunais escolhem os seus futuros colegas com qual legitimidade e por quais critérios? E os membros dos Tribunais Regionais, Tribunais do Trabalho, STJ, TST, que são indicados pelo Presidente da República são magistrados menos legítimos do que os aprovados em concurso público? E o que dizer dos indicados ao STF, sem qualquer lista prévia? Reflexões que bem demonstram a inteira legitimidade do Quinto Constitucional. Percebe-se que o barco da legitimidade de todos os membros de tribunais, oriundos do quinto ou da carreira, é o mesmo, o constitucional. Não há como afundar um, sem afundar o outro. É dizer, o raciocínio utilizado para extirpar o quinto constitucional serve para fundamentar a própria extinção do Judiciário, pelo menos de seus órgãos colegiados, para os quais há eleição e escolhas não baseadas apenas em critérios eminentemente técnicos.
Os poderes de Estado vivem harmônica e independentemente entre si. Para viabilizar esta convivência, tem-se o sistema de check and balances, freios e contrapesos. O Judiciário, que não legisla, pode declarar a norma inválida por inconstitucionalidade. O Judiciário, que não executa, pode tornar sem efeito atos administrativos ilegais ou abusivos. O Legislativo fiscaliza o Executivo. O Legislativo aprova os orçamentos dos Poderes. O Executivo, que não pode julgar, indica alguns membros da magistratura, com a legitimidade popular.
O Quinto Constitucional, sendo inerente à harmonia e independência entre os poderes, constitui-se em cláusula pétrea, sendo inconstitucional a emenda que tenda a lhe subtrair. Por certo, o art.60, parágrafo quarto, da Carta da República, veda seja objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir a separação dos Poderes. Esta ínsito à tal separação a prevalência de harmonia e do sistema de controle recíproco. O quinto constitucional, enquanto legítimo elemento de harmonização e controle dos poderes entre si, inclui-se no núcleo imutável da Constituição, tornando-se indubitável a inconstitucionalidade de sua extinção. O poder constituinte derivado não possui a delegação do poder originário para, no ponto, alterar a Carta Constitucional, por se tratar, o quinto constitucional, matéria que integra o rol das cláusulas pétreas, por ser elemento garantidor da separação entre os poderes. O quinto integra o núcleo imodificável implícito da Constituição. Em outras palavras, por ser elemento conceitual integrativo da separação dos poderes, o quinto constitucional não pode ser abolido.
No dizer de José Afonso da Silva, “atribuir a qualquer dos Poderes atribuições que a Constituição só outorga a outro importará tendência a abolir o principio da separação de poderes” (in Curso de Direito Constitucional Positivo, 23ª. ed. Ed. Malheiros, SP, p. 67). A extinção do Quinto retiraria do Chefe do Executivo a competência prevista pelo Poder Constituinte originário, outorgando-a a outro Poder, sendo, deste modo, materialmente inconstitucional.
O quinto constitucional, no Brasil, é oriundo da Constituição democrática de 1934, sendo repetida em todas as Constituições seguintes. Fruto, portanto, da Revolução de 30,- que possuía como lema Justiça e Representação - e da revolução constitucionalista de 1932. É a mesma Carta Constitucional que estatuiu o voto das mulheres e os direitos sociais ou direitos humanos de segunda geração. Registre-se que a Constituição de 1891 já fazia previsão que os juízes federais seriam escolhidos pelo Presidente da Republicam a partir de lista tríplice formada pelo STF entre advogados e membros do Ministério Público. Antes da Constituição de 34, os Tribunais de Justiça da Bahia e do Distrito Federal faziam previsão de acesso a estas carreiras por nomeação de outras carreiras que não a magistratura.
O quinto constitucional não existe para proteger interesses corporativos ou de classes, nem foi instituído com o objetivo de facilitar negociações entre setores, menos ainda advocacia e ministério publico litigam em juízo em nome próprio, mas sempre representando terceiros, o constituinte e a sociedade, respectivamente. Não se confunde, deste modo, com a representação classista da Justiça do Trabalho.
A independência e a imparcialidade do magistrado não são garantidas por concurso publico, nem retiradas pelo democrático processo do Quinto. Na realidade, é ínsito à índole do ocupante do cargo e ao controle social sobre o exercício da função. Não sendo o julgamento ato estanque, mas fruto da dialética atuação da advocacia e do Ministério Público, estas carreiras possuem conhecimento e habilidades que contribuem para a distribuição da Justiça.
Evidente que não pode haver magistrados de duas categorias, atentando contra o principio isonômico. Desde que alçado à condição de juiz, os magistrados egressos do Quinto não podem ser discriminados, podendo acessar promoção para tribunais superiores na quota da magistratura. Por outro ângulo, pacificado na jurisprudência que a regra expressa de um quinto para advogados e membros do Ministério Público deve prevalecer, quando se tratar de numero de membros de Tribunal não múltiplo de cinco.
No mundo ocidental, o Quinto é regra aplicada. O Supremo Tribunal de Justiça de Portugal é composto por um quinto oriundo do Ministério Público e de juristas. O Conselho da Corte de Cassação da Itália também é integrado por oriundos da advocacia e da docência. Na Espanha, elevou-se de um quinto para um terço o número de magistrados, de primeiro e segundo graus, que são selecionados entre os juristas com 10 anos de atividade jurídica. O ministro STF, Enrique Ricardo Lewandowski, defendeu no Plenário do Conselho Federal da OAB (31/08/06) a manutenção do Quinto Constitucional da advocacia e do Ministério Público como mecanismos de “oxigenação da Justiça”. E acrescenta, “essa participação imprime a visão do mundo do advogado e do promotor para enriquecer a atividade jurisdicional e é um fator inibidor do corporativismo na magistratura”.
Lewandowski afirma que o magistrado do Quinto Constitucional “entra, sim, pela porta da frente. Mais ainda, entra por um portal constitucional, o que é muito mais importante porque a profissão do advogado é a única expressa na Constituição Federal como sendo indispensável à administração da Justiça”. Efetuada a análise da matéria sem as indesejáveis fulanização do debate, análise casuística ou corporativa, generalizações impróprias e comparações simplistas. Verificado que a advocacia e o Ministério Público estão no patamar de horizontalidade com o Judiciário. Constatado que o poder emana do povo, sendo natural o seu exercício por delegação popular, é dizer por indicação do representante do povo. E, por fim, verificado que o quinto constitucional é elemento da separação dos poderes, por integrar a harmonia e o controle recíprocos. Inexorável a conclusão da adequação do quinto constitucional, bem assim da inconstitucionalidade da proposta de sua extinção.
Eis, pois, os fundamentos de defesa do Quinto Constitucional, com o qual a nação passa a possuir um Judiciário mais democrático, legítimo e renovador".
Marcus Vinicius Furtado Coêlho
Presidente Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil