Artigo: "O direito à verdade no regime republicano"

segunda-feira, 27 de dezembro de 2004 às 10:10

Brasília, 27/12/2004 - O artigo "O direito à verdade no regime republicano", de autoria do professor e jurista Fábio Konder Comparato, foi publicado na edição deste domingo (26) no Jornal Folha de S. Paulo. Comparato é o coordenador da Campanha Nacional de Defesa da República e da Democracia, lançada em 15 de novembro deste ano pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

"O fatídico juízo de frei Vicente do Salvador continua a pesar sobre nós como uma maldição, quatro séculos depois de proferido: "Nem um homem nesta terra é repúblico nem zela ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular". Se o nosso povo, acostumado desde sempre à pacífica submissão, pode ser excluído dessa censura, por certo as chamadas elites dominantes, de todas as épocas, bem merecem a reprovação expressa pelo primeiro historiador do Brasil.

O último e deplorável exemplo de persistência nesse modo de ser anti-republicano nos é dado agora pelo governo federal, com a sua recusa ou relutância em tornar públicos certos arquivos do Estado.

Vamos partir de um princípio ético elementar. Em hipótese nenhuma os crimes cometidos por agentes públicos (ou seja, etimologicamente, funcionários do povo) podem ser subtraídos ao conhecimento público. Nenhuma razão de política interna ou internacional poderá jamais justificar a violação desse princípio. No campo da política interna, o encobrimento oficial de delitos representa, sempre, a superposição do interesse particular de grupos, classes ou corporações ao direito fundamental do povo de conhecer a verdade, isto é, a identidade dos criminosos e as circunstâncias do crime. No plano internacional, a pretensa razão de Estado, invocada para fundamentar o sigilo, nada mais é do que a afirmação do interesse próprio de um país contra o bem comum da humanidade. Em ambas as hipóteses, portanto, há uma patente negação do princípio republicano.

O atual governo da União vem renovar, pela enésima vez em nossa história, o triste espetáculo desse repúdio à idéia de República. De um lado, ele multiplica óbices à revelação dos documentos oficiais relativos aos crimes cometidos durante o regime militar pelos mais diversos governantes. De outro lado, integrantes do Itamaraty vêm sustentar a necessidade de manter em perpétuo sigilo as vergonhosas condições em que este país logrou se apossar de uma parcela do território paraguaio, ao final da guerra de 1865 a 1870.

Em nenhum dos dois casos a Constituição autoriza essa restrição ao direito fundamental à verdade. Ela declara, no 30º inciso do seu artigo 5º, que "todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações do seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral", ressalvando apenas "aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado".

Em primeiro lugar, num Estado de Direito republicano, a segurança da sociedade e do Estado não pode se sobrepor ao princípio da dignidade da pessoa humana (Constituição, art. 1º). Um Estado totalitário é capaz de se manter em condições de segurança absoluta durante certo tempo; mas ninguém ousará sustentar que ele defende, com isso, a dignidade humana.

Em segundo lugar, mesmo nas hipóteses em que, longe de todo acobertamento de crimes, as autoridades públicas são admitidas a manter segredo sobre certos fatos para a preservação da segurança do Estado e da sociedade, compete a elas provar, caso por caso, a legitimidade do sigilo, pois que se trata de uma exceção ao princípio da publicidade de todos os atos oficiais (Constituição, art. 37, caput), e o ônus da prova incumbe, sempre, àquele que invoca a exceção contra o princípio de direito.

A recusa dos recentes governos em abrir os arquivos dos horrores praticados durante o regime militar contra os então dissidentes funda-se, na verdade, em outras razões, bem conhecidas de todos. É a proteção ignominiosa dos torturadores, assassinos, estupradores e todos os que lhes deram apoio, nos mais diversos órgãos do Estado, muitos dos quais estão vivos ainda hoje, a gozar de escandalosa impunidade. É, ainda, o indigno temor de enfrentar uma revolta no oficialato das Forças Armadas, adestrado tradicionalmente a defender a corporação militar acima de tudo.

Os constituintes de 1988 imaginaram um paliativo a esse espinhoso problema, ao concederem, no art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, sob o surpreendente pretexto de anistia (os malabarismo semânticos são um esporte nacional), reparações a todas as vítimas do regime militar. Com base nesse dispositivo da Constituição, foram editadas, no plano federal, a lei nº 9.140, de 1995, sobre os desaparecidos políticos, e a lei nº 10.559, de 2002, sobre os "anistiados políticos" de modo geral, e outras leis semelhantes em alguns Estados.

Sucede, porém, que, com essa hipócrita política de "reconciliação e pacificação nacional" (lei nº 9.140, art. 2º), o legislador esqueceu-se de um pormenor. A Constituição Federal determina, em seu art. 37, par. 6º, que a pessoa jurídica de direito público, reconhecida como responsável pelos danos que seus agentes causem a terceiros, tem o dever de agir em regresso contra o causador do dano, para dele haver o reembolso do que foi pago à vítima, uma vez que essa indenização é feita com dinheiro público. Em caso de recusa ou omissão do Estado em agir regressivamente contra o agente causador do dano, o Ministério Público, em ação pública, ou qualquer cidadão, em ação popular, poderão pleitear a condenação do representante dessa pessoa jurídica de direito público.

É óbvio, portanto, que não se tratou de nenhum lapso de memória do legislador. As autoridades do nosso pretenso Estado republicano quiseram deixar os criminosos do período castrense isentos de toda responsabilidade.

É mais uma razão a justificar plenamente a oportunidade da Campanha Nacional em Defesa da República e da Democracia, lançada pela OAB, com o apoio de prestigiosas entidades da nossa sociedade civil.

Que o nosso povo possa, enfim, depois de tantos séculos de exclusão anti-republicana, subir ao proscênio da vida política, para vindicar a supremacia do bem comum contra a preponderância atávica dos interesses particulares!"

Fábio Konder Comparato, 68, advogado, doutor pela Universidade de Paris, é professor titular da Faculdade de Direito da USP e doutor honoris causa da Universidade de Coimbra (Portugal).