Aristoteles: Adaucto Cardoso defendeu os interesses da Pátria
Brasília, 02/06/2005 - O Supremo Tribunal Federal realiza nesta quinta-feira (02) solenidade em homenagem ao centenário de nascimento do ministro Adaucto Cardoso. A cerimônia teve início na abertura da sessão de julgamento do plenário, às 14h, e dela participa o vice-presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Aristoteles Atheniense, representando o Conselho Federal da entidade por designação do presidente nacional da OAB, Roberto Busato. Em discurso na solenidade, Aristoteles afirmou que Adaucto Carddoso “sobrepôs os elevados interesses da Pátria às suas conveniências pessoais; arrostou incompreensões de toda sorte ao longo de sua trajetória vitoriosa, como político, advogado e magistrado”.
Adaucto Lucio Cardoso nasceu em 24 de dezembro de 1904, na cidade de Curvelo, Minas Gerais. Formou-se em Direito em 1927, pela Faculdade Nacional, no Rio de Janeiro. Exerceu ativamente a advocacia, tendo sido membro do Conselho Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil (Rio de Janeiro) e Delegado de Minas Gerais no Conselho Federal. Nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal no dia 14 de fevereiro de 1967, tomou posse em 2 de março seguinte. Na sessão de julgamento de 10 de março de 1971, Adaucto Cardoso decidiu solicitar aposentadoria, que foi concedida no dia 19 do mesmo mês. O ministro era casado com Helena Paladini Cardoso e faleceu em 20 de julho de 1974, no Rio de Janeiro.
A seguir, a íntegra do pronunciamento do vice-presidente do Conselho Federal da OAB, Aristoteles Athenisense, na cerimônia do STF em homenagem ao centenário de nascimentodo ministro Adaucto Cardoso:
“Na madrugada de 20 de outubro de 1966, tropas do Exército fecharam o Eixo Monumental nas proximidades da Rodoviária e avançaram rumo ao Congresso.
Apoiavam metralhadoras no chão e faziam pontaria. Era grande o movimento de tanques e caminhões.
Na semana anterior, o Presidente da Câmara dos Deputados, considerando ilegítima a cassação recente de seis mandatos de deputados federais - inclusive o líder do MDB Armindo Dotel de Andrade - continuou a tratar os cassados como parlamentares, inclusive concedendo-lhes a palavra em plenário.
No Congresso, a luz e a água foram cortadas, a invasão era iminente, comandada pelo Cel. Meira Mattos, metido num uniforme de campanha, usando capacete, cinto de balas e pistola embalada.
Assim, cercado de soldados, em marcha acelerada, ingressou no salão principal.
De pé, no primeiro degrau da escada que dava acesso ao segundo andar, o deputado Adaucto Lúcio Cardoso, dirigindo-se ao militar, gritou: “Alto! Quem é você?”
Meira Mattos toma posição de sentido: “Eu sou o poder militar”.
E recebe a resposta: “Pois eu sou o poder civil. Cumpra a sua missão, mas saiba que a história o condenará” (apud RONAL-DO COSTA COUTO, “Câmara nos 500 Anos: história e perspectiva”).
No dia 29 de novembro, Adaucto renunciava à presidência da Casa.
Foi o que fez pela segunda vez e esta não seria a última.
Quando vereador do Rio de Janeiro procedera da mesma forma, aliando-se a Carlos Lacerda, por discordar da Lei Orgânica que conferia ao Senado o exame dos vetos do Prefeito do Distrito Federal.
Esta é a figura que o Supremo Tribunal Federal reverencia, nesta tarde, pela passagem de seu centenário.
Na avaliação precisa de Barbosa Lima Sobrinho, “Adaucto Lúcio Cardoso gostava das posições vanguardeiras. Havia nele, até no olhar e nos gestos, alguma coisa de desafio, quase diria de provocação. Talvez não contasse com os arrobos da imaginação que despertam entusiasmos, mas possuía segurança de quem se dava todo aos seus combates, com uma absoluta sinceridade, sem planos e sem cálculos”.
A sua presença na Ordem dos Advogados foi marcante. Após deixar esta Corte, retornando à advocacia, afirmou em discurso pronunciado na Semana do Advogado (10.8.72): “As inelutáveis contin-gências da advocacia, da liberdade, me lançaram na política. E as da política me fizeram ingressar na magistratura”.
Carlos Castelo Branco, testemunha permanente desses arrebatamentos indomáveis, registrou: “No final de cada episódio, sobre as conveniências políticas e as dúvidas de consciência, prevalecia seu instinto moral, que foi o impulso mais constante de toda a sua vida de advogado e de político”.
Adaucto Lúcio Cardoso fez o curso secundário no tradicional Ginásio Mineiro de Belo Horizonte, transferindo-se para o Rio de Janeiro, onde bacharelou-se pela Faculdade Nacional de Direito, em 1927.
Na capital federal foi repórter, tornando-se, mais tarde, consultor jurídico do Lóide Brasileiro, onde ingressou como Conferente de Cargas.
Exercia a consultoria jurídica do Ministério de Obras Públicas, tendo sido o primeiro a assinar o “Manifesto dos Mineiros”, em 1943, que observou a ordem alfabética dos signatários.
Aquele documento que, a princípio, parecia não ter maiores conseqüências, constituiu-se no primeiro impacto sobre o regime ditatorial. Aquela declaração, embora pacífica na sua estrutura, amena na sua forma e desambiciosa nos seus resultados imediatos, representou o primeiro gesto das lideranças políticas de resistência ao “Estado Novo”.
Participou do II Congresso Jurídico Nacional, realizado no Rio de Janeiro, em 1943, promovido pelo Instituto dos Advogados do Brasil, tendo como companheiros Pedro Aleixo e Caio Mário da Silva Pereira.
As bancadas do Distrito Federal e de Minas Gerais retiraram-se do conclave, descontentes com o veto ao funcionamento de uma sessão onde mineiros e cariocas reivindicavam o direito de discutir livremente a redemocratização do país.
Em 1944, foi preso juntamente com Virgílio de Melo Franco, Austregésilo de Athayde e Rafael Corrêa de Oliveira, que foram libertados em razão de hábeas corpus impetrado pelo advogado Evandro Lins e Silva.
Ao longo de toda sua vida pública assumiu posições corajosas, tendo como companheiro inseparável, nas resistências ao arbítrio, Heráclito Sobral Pinto, que via nele o protótipo do combatente que só se submetia aos valores de sua consciência.
Nas eleições de novembro de 1966, reelegeu-se para o quarto mandato como deputado federal.
Com a vaga deixada pela aposentadoria do Ministro Álvaro Ribeiro da Costa, foi nomeado pelo presidente Castelo Branco Ministro do Supremo Tribunal Federal.
Durante sua permanência nesta Corte foi relator de processos envolvendo temas de grande repercussão, mormente os relacionados com a competência para a apuração de infrações contra a segurança nacional.
Foi o que ocorreu no HC 46.060, em que figurava como paciente o líder estudantil Vladimir Palmeira, que se encontrava preso sob a alegação de ter realizado desfile ou passeata, estando incurso no art. 38 do Decreto-lei 314 de 3.3.64.
Naquela oportunidade, a ordem foi concedida, mediante o reconhe-cimento do Relator de que “.. no direito positivo imperial, como no republicano, uma coisa é inquérito policial e outra a ação penal constituída do processo e do julgamento. (...) Trata-se de prisão feita antes mesmo da abertura do IPM, transformada em medida preventiva antes do processo judicial e enquanto se realiza o inquérito policial militar” (22.9.68).
Decorridos alguns dias daquele julgamento, coube-lhe relatar outro hábeas corpus, dessa vez em favor de Darci Ribeiro.
Contra este pesava a alegação de que tivera a sua prisão determinada pelo General Comandante da Divisão Blindada, Ramiro Tavares Gonçalves, que assim a justificou em suas informações: “Até o presente momento, o aludido indiciado não foi recolhido à prisão, visto não haver sido nem capturado, mas se apresentado voluntariamente, apesar de clamar pelo elevado espírito de Justiça dos nossos Tribunais, não obstante afrontar as mesmas instituições, cuja derrocada pretendia em suas atividades subversivas”.
O habeas corpus de n.o 46.415 foi concedido, tendo o Relator assinalado em seu voto: “Ocorre a ressurreição da antiga figura da prisão para simples averiguações, que, a partir de 1934 se tornou incompatível com a ordem jurídica constitucional.(...) Assim se vê claramente visto que a prisão para averiguações, ainda em crimes contra a segurança nacional, tais os que são referidos nas informações, não é contemplada no ordenamento jurídico vigente.(... ) A ilegalidade e o arbítrio que pesa contra o paciente parecem-me sobejamente comprovados”.
Em sua permanência na Suprema Corte, o fato mais expressivo da atuação do Ministro Adaucto Lúcio Cardoso consistiu no julgamento da Reclamação n.o 849 do MDB contra ato da Procuradoria Geral da República.
Esta desacolhia a argüição de inconstitucionalidade do Decreto-lei 1.077/70, editado no governo do Presidente Médici, mais conhecido como “lei da mordaça”, por atentar contra a liberdade de expressão.
Conforme noticiado à época do julgamento, Adaucto manifestou-se favorável não só ao conhecimento da Reclamação como ao seu provimento.
Nesta proposta, ficou sozinho, pois a jurisprudência da Casa lhe era contrária, sendo desfavorável à emissão de juízo antecipado sobre a constitucionalidade daquele diploma.
Na sessão de julgamento, Adaucto externou seu inconformismo contra o malsinado Decreto-lei e, como não encontrou seguidores, não hesitou em deixar a Corte, requerendo a sua aposentadoria, o que ocorreu em 10 de março de 1971.
Esta manifestação foi adotada sem render-se aos argumentos de seus pares, num gesto dramático ao desvestir-se da toga de juiz, pronunciando a frase histórica: “Ao rei pode-se dar tudo, menos a honra”.
Conforme assinalou o Ministro Bilac Pinto, na sessão de homenagem realizada por ocasião de sua morte: “Seu repente não surpreendeu, porém, aos que o conheciam de perto e com ele haviam participado das mesmas emoções, na áspera luta política de combate à ditadura nos anos quarenta, nas pelejas da oposição e no esforço permanente da defesa das liberdades democráticas”.
Ao retornar à sua condição de advogado, tomado da obstinação de resistir a toda espécie de arbítrio, Adaucto Lúcio Cardoso ingressou no Tribunal Federal de Recursos com um mandado de segurança em favor do Semanário “Opinião”, sustentando a mesma tese contrária a aplicação do Decreto-lei 1.077, saindo vitorioso por quatro votos a três.
Eminente Ministro Presidente, Senhores Ministros e Dignas Autoridades:
Esta solenidade comporta, em sua parte derradeira, um registro especial.
Curvelo é uma cidade mineira que tem Santo Antônio como padroeiro, mas é São Geraldo que atrai para suas ruas uma das maiores romarias do Brasil: “a Oitava de São Geraldo”.
A basílica de São Geraldo Magela é a segunda maior dedicada àquele santo em todo mundo e a única existente na América do Sul.
Em 1865, instalou-se ali a primeira fábrica de tecidos e a primeira sociedade anônima do Estado de Minas Gerais: a tradicional Cedro & Cachoeira.
Foi nesta cidade, fundada há mais de 250 anos pelo padre redentorista Ávila Curvelo, que nasceu Adaucto Lúcio Cardoso, na véspera do Natal de 1904.
Passados seis anos, ali também nasceu Antônio Gonçalves de Oliveira que, como Adaucto, tornou-se advogado e, após ocupar cargos da maior expressão, inclusive o de organizador da Novacap, atingiu o Supremo Tribunal Federal.
Os dois curvelanos históricos tiveram em comum a mesma atitude:
Em 18 de janeiro 1969, Antônio Gonçalves de Oliveira, que havia substituído o Ministro Orozimbo Nonato, formulou seu pedido de retirada, em face da crise política reinante que atingiu o seu ápice com a aposentadoria compulsória de três ministros deste Sodalício.
Passados dois anos (10.3.71), sobreveio o mesmo ato por parte do nosso homenageado.
Adaucto Lúcio Cardoso e Antônio Gonçalves de Oliveira foram conselheiros federais da Ordem dos Advogados como representantes de seu estado de origem e, após a aposentadoria, reassumiram as atividades normais de um advogado.
Ainda, por outra coincidência, coube-me a honra de discursar na solenidade realizada neste Colendo Tribunal, por ocasião do falecimento do Ministro Antônio Gonçalves de Oliveira, fazendo-o em nome do Conselho Federal, como agora novamente acontece, desta vez por delegação do atual presidente, Roberto Antônio Busato.
Daí entender que não poderia omitir estes fatos, ainda que possam ser considerados obras do acaso.
Dois renunciantes naturais de uma cidade comum: Curvelo.
As aposentadorias dos Ministros Adaucto Lúcio Cardoso e Antônio Gonçalves de Oliveira, cidadãos que souberam se impor em fases conturbadas da vida nacional, fazem-nos lembrar o verso de Dante: “Os lugares mais quentes do inferno são reservados para aqueles que, em épocas de grande crise moral, se mantêm na neutralidade”.
Adaucto Lúcio Cardoso sobrepôs os elevados interesses da Pátria às suas conveniências pessoais.
Arrostou incompreensões de toda sorte ao longo de sua trajetória vitoriosa, como político, advogado e magistrado.
Foi, sobretudo, um homem de bem, enquadrando-se ao conceito que Quintino Bocaiúva nos legou no alvorecer da República: “Quem aspira ser grande, não pode deixar de aspirar a ser bom. A virtude é a primeira grandeza deste mundo. O grande homem é o homem de bem”.
Adaucto Lúcio Cardoso é a síntese desta verdade.”