Entrevista: Acabou a farra dos "bacharéis"
Brasília, 27/01/2008 - A entrevista "Acabou a farra dos bacharéis" foi concedida pelo presidente da Seccional do Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RJ), Wadih Damous, aos jornalistas Marcone Formiga e Pollyanna Nóbrega, a revista Brasília em Dia.
Faz muitos anos que o Ministério da Educação tinha conhecimento que os cursos de Direito que autorizava funcionavam mesmo como fábricas de diplomas de bacharéis, em muitos casos semi-alfabetizados, com total ignorância, incapazes de redigir um requerimento sequer sem agredir a gramática e as mais elementares regras jurídicas. Simplesmente funcionavam como caça-níqueis, porque as dificuldades para esses “bacharéis” ingressarem no mercado de trabalho, como advogados, foram ficando cada vez mais difíceis.
Piorou de vez quando foram descobertas fraudes no Exame de Ordem, que avalia a qualificação com rigor. O Distrito Federal entrou no circuito das fraudes, como também na decisão do MEC em restringir o número de alunos nos cursos de Direito do UniEuro e Uniplac, entidades com ensino muito abaixo do nível desejado.
Mestre em Direito Constitucional do Estado, Wadih Nemer Damous Filho, presidente da OAB, seccional do Rio de Janeiro, explica nesta entrevista aos repórteres Marcone Formiga e Pollyanna Nóbrega, da revista “Brasília em Dia”, porque é contra o funcionamento das faculdades caça-níqueis.
P- Um médico com má formação pode levar o paciente à morte; um engenheiro pode projetar um edifício que acaba desmoronando. E quanto a um advogado sem qualificação, qual a conseqüência disso para seus clientes?
R- As conseqüências podem ser tão nefastas quanto os exemplos que você deu. Um mau advogado pode causar danos irreversíveis ao patrimônio, pode causar danos à honra do cidadão, pode causar restrições à sua liberdade física.... São muitos os males e os prejuízos que um mau advogado pode causar à sociedade. Daí a nossa ênfase no aperfeiçoamento do Exame de Ordem. Este exame deve servir como uma espécie de correção a essas distorções que o mau ensino jurídico acaba proporcionando à sociedade brasileira.
P- Qual é a responsabilidade da OAB ao permitir o funcionamento de faculdades sem qualificação?
R- A OAB não tem o poder de criar e fechar cursos. Essa é uma atribuição do Ministério da Educação, mas a OAB tem colaborado nos últimos anos com o MEC no sentido de fornecer informações e formular propostas, proposições, sempre no sentido de melhorar o funcionamento desses cursos. A OAB está muito à vontade nesse sentido. Nós temos cobrado, insistentemente, medidas mais duras, mais arrojadas, em relação a esses cursos. Nem sempre somos atendidos. Vou lhe dar um exemplo: no início do ano passado, o Conselho Federal recomendou a não autorização do funcionamento de 20 cursos de Direito, e o MEC concedeu a autorização a 19. Isso, de fato, acaba fazendo com que todo o esforço da OAB vá por água abaixo. Mas, de qualquer maneira, essa última medida do MEC - de redução de vagas desses cursos - me parece promissora.
P- Há advogados atuando que são quase analfabetos. Como explicar isso?
R- Percebemos, no contato com alguns colegas, uma precariedade de formação. Não só formação jurídica, mas formação básica, pessoas que mal conseguem concatenar um raciocínio. Essa é a prova de que a OAB estava no caminho correto, quando instituiu o Exame de Ordem, quando o aperfeiçoou e o tornou mais rigoroso. O Exame de Ordem, infelizmente, é um remédio amargo para uma situação que não foi criada pela OAB.
P- Além disso, existem faculdades de Direito que funcionam como caça-níqueis ou fabriquetas de bacharéis. Por que chegou a esse nível de desmoralização um curso que sempre foi símbolo de bom preparo?
R- O fenômeno da mercantilização do ensino não acontece só na esfera do Direito. Nós percebemos isso em diversas outras áreas, até na medicina, na engenharia, em outras áreas de conhecimento. Efetivamente, no que diz respeito ao Direito, era das faculdades de Direito do Brasil que saíam os quadros que governavam esse país... Dava até a impressão de um quadro elitista, porque era excludente, não permitia amplos espaços da população que a eles tivesse acesso. Ao defendermos a qualidade dos cursos jurídicos, ao mesmo tempo nós defendemos a democratização do ensino. O que nós exigimos é apenas a qualidade acadêmica, que não pode ser prejudicada em detrimento da pulverização dos cursos jurídicos. De fato existem esses cursos caça-níqueis, que quando postos em confronto com os cursos tradicionais no Exame de Ordem nos permitem ver de fato o que é a qualidade de ensino. As faculdades de Direito tradicionais, pelo menos no Rio de Janeiro, aprovam praticamente 100% dos seus estudantes no Exame de Ordem, o que mostra efetivamente que por trás desse alto índice de reprovação se encontra a má qualidade do curso que esses bacharéis fizeram.
P- Mais do que fabriquetas de bacharéis parecem ser apenas emissoras de diplomas...
R- É verdade. São cursos que têm por finalidade simplesmente auferir lucros, sem qualquer compromisso com a qualidade acadêmica. Mas, compete ao MEC, em parceria com a OAB, dar um basta nisso. Eu espero, e repito, que essa medida de redução das vagas seja acompanhada de outras, no sentido, até mais à frente, de fechamento de determinados cursos que, definitivamente, não têm condições de apresentar uma boa qualidade acadêmica.
P- E quanto ao aspecto ético, com advogados mantendo relações promíscuas com o crime organizado?
R- Isso, efetivamente, é parte do problema. Reflete uma péssima formação profissional, também acadêmica, obviamente, porque acaba descuidando da formação ética do estudante, podendo fazer com que ocorra essa situação. Agora, claro, esse é um problema mais profundo da sociedade brasileira, não é um problema a ser enfrentado só com medidas acadêmicas, administrativas, em relação à qualificação do estudante. Essa é uma questão mais profunda, que não se esgota na discussão da qualidade dos cursos jurídicos. Mas efetivamente a má qualidade acaba colaborando para esse tipo de coisa.
P- O Exame de Ordem avalia se o bacharel tem ou não preparo para exercer a profissão de advogado. Mas ocorreram fraudes na OAB do Distrito Federal. Qual é a avaliação que o senhor faz disso?
R- Primeiramente, o Exame de Ordem, por si só, não garante que aquele que foi aprovado será um grande advogado, um advogado bem sucedido. O exame visa aferir uma capacitação mínima, o pressuposto mínimo exigido que cada um deve ter para um futuro de bom exercício profissional - o que não está assegurado só pela sua aprovação. Ele pode ser um excelente estudante, pode ter um conhecimento técnico em relação às questões que foram formuladas no exame, mas, mais à frente, demonstrar um fracasso como profissional. Embora essa possibilidade seja bem mais reduzida em relação àquele que foi mal formado academicamente. Quanto a fraudes, tanto no Distrito Federal como em outras unidades da OAB, elas efetivamente ocorreram e estão sendo apuradas. O exame foi terceirizado e está unificado nacionalmente, exatamente para impedir esse tipo de fraude. Apenas São Paulo, até agora, não aderiu a essa unificação. Hoje é uma instituição à parte que organiza, formula as questões e organiza a logística das provas. Essas fraudes não mais ocorrerão. Agora, aquilo que já tiver ocorrido tem que ser apurado, e os responsáveis serão punidos.
P- A unificação do Exame de Ordem resolverá o problema das fraudes?
R- A unificação talvez não consiga acabar efetivamente com as fraudes, mas pode torná-las praticamente impossíveis de acontecer. Efetivamente, se vier a ocorrer uma fraude eventual nessa ou naquela prova, naquele exame, isso não poderá ser atribuído à OAB, já que ela terceirizou essa responsabilidade. Quanto aos benefícios, o item segurança é muito importante, e a unificação possibilita isso. Além disso, ela permite que nós tenhamos, em termos de pretendentes da advocacia, um conhecimento unificado nacionalmente, um conhecimento padronizado em termos de exigências para um futuro do bom exercício profissional. Eu acho que a unificação traz muito mais benefícios do que malefícios. É um ponto positivo dessa gestão do Conselho Federal.
P- Com seccionais da OAB vendendo provas do exame, pode-se permitir que bacharéis desqualificados entrem no mercado de trabalho. O que fazer para blindar o acesso de maus profissionais do Direito?
R- A unificação é um fator positivo no sentido de assegurar absoluta segurança contra possíveis vazamentos de questões, de publicação prévia de gabaritos, enfim... Obviamente, a blindagem de acesso aos maus profissionais não se dá de forma absoluta. Sempre tem esse ou aquele que consegue driblar determinados obstáculos e se estabelecer no mercado. Isso tem que ser dificultado, tem que ser tornado praticamente impossível. Qualquer caso que ocorra nesse sentido tem que ser devidamente punido pela própria OAB, que tem o poder de fiscalização e o poder disciplinar sobre esses profissionais.
P- No Rio de Janeiro, seis bacharéis de Direito buscaram na Justiça a possibilidade de exercer a advocacia sem a aprovação no Exame de Ordem. Isso não é um precedente perigoso?
R- Essa decisão foi proferida no Rio e já foi cassada. Foi uma decisão isolada, que não apresenta qualquer consistência jurídica. Eu tenho certeza de que o Poder Judiciário, que é o maior interessado em uma advocacia qualificada, não vai compactuar com esse tipo de entendimento, porque significaria o fim da advocacia e o caos no mundo jurídico brasileiro. Nós estamos muito tranqüilos em relação a isso. Com toda a certeza, o Judiciário vai rechaçar essas teses esdrúxulas de inconstitucionalidade do exame e, em breve, a normalidade estará estabelecida nessa área. Provavelmente, os Tribunais Superiores vão firmar jurisprudência em relação a isso, e em pouco tempo essas ações temerárias deixarão de ser tentadas.
P- Eles alegam ser inconstitucional o fato de a OAB exigir que as pessoas formadas no curso de Direito devam ser aprovadas no exame para que possam exercer a profissão. O que o senhor acha disso?
R- Essas pessoas descobrem isso depois que não conseguem passar no exame. Primeiro tentam, aí não conseguem e depois discorrem que o exame é inconstitucional. Não há inconstitucionalidade alguma! A Constituição, ao mesmo tempo em que assegura o livre exercício das profissões, autoriza que a legislação ordinária estabeleça requisitos, estabeleça qualificações - o que é o caso do Exame de Ordem. Então, repito que não há inconstitucionalidade alguma. Essa é uma tese absolutamente inconsistente, oportunista, que sai exatamente do meio que está sendo prejudicado com o Exame de Ordem.
P- Faz sentido o argumento que eles usam, baseado no princípio da isonomia, previsto na Constituição (igualdade perante a lei), já que outras carreiras no país não exigem aprovação em uma prova para trabalhar?
R- Se for assim, bastaria que as outras carreiras também estabelecessem o exame, o que, aliás, muitas delas já estão providenciando. Os engenheiros, os médicos - se não me engano -, e os contabilistas já estão com projetos de lei no Congresso Nacional para a instituição dos seus respectivos exames. Esse tipo de tese também não tem a menor sustentação. Não há qualquer tipo de violação para esse tipo de isonomia.
P- Outro argumento é que cabe à OAB fiscalizar as pessoas já filiadas à entidade e não aquelas que ainda não entraram...
R- A OAB, quando institui o Exame de Ordem, não está exercendo um papel fiscalizador. O que pretende é assegurar a boa qualidade do futuro profissional e assegurar que os interesses da sociedade sejam bem defendidos por esses profissionais. A OAB não se limita a fiscalizar a atividade profissional, ela é muito mais do que isso. Ela é guardiã da ordem jurídica do Estado de Direito democrático e, como qualquer outra entidade, tem a obrigação e o dever de zelar pela dignidade dos seus representados. Isto é o que justifica o Exame de Ordem.
P- O Movimento Nacional dos Bacharéis em Direito, que move a ação, acusa a OAB de se empenhar em fazer reserva de mercado. O que o senhor diz sobre essa acusação?
R- Esse Movimento precisa ser melhor investigado, já que é um movimento nacional de bacharéis. É preciso saber qual é a fonte de recursos desse movimento, já que se pressupõe que essas pessoas não estão ainda no mercado de trabalho, não vivem de recursos próprios. No entanto, o Movimento tem sites, tem jornais, produz milhares de panfletos contra o Exame de Ordem... Acho que o Ministério Público deveria investigar a fonte de recursos desse Movimento. Por outro lado, esse tipo de afirmação é muito pueril. Não se trata de defender reserva de mercado, trata-se, sim, de defender a dignidade de uma profissão, a segurança da população e da sociedade. Isso não tem nada a ver com reserva de mercado. Eu recomendo a esses jovens que estudem e passem no exame, e lutem de verdade para a melhoria dos seus cursos jurídicos. Ao invés de estarem gastando energia hostilizando o Exame de Ordem, deveriam estar lutando pela melhor qualificação dos seus cursos jurídicos. Eles também são vítimas desses maus cursos.
P- Existe um confronto entre a OAB e os bacharéis que contestam o Exame de Ordem?
R- Compreendemos o drama dessas pessoas. São sonhos que muitas vezes vão por água abaixo ao enfrentar o Exame de Ordem. O investimento que seus familiares fizeram... Isso, de fato, é um drama social que nos entristece muito. Mas, por outro lado, outro drama maior ainda pode ser gerado pela existência no mercado de profissionais despreparados. A OAB também não pode virar as costas para isso. Nós convidamos esses estudantes para, através de suas entidades legitimamente constituídas, seus centros acadêmicos, seus diretórios acadêmicos, promover debates que tenham como objetivo a melhoria do ensino jurídico no país, e não um movimento contra o Exame de Ordem... Esse é o caminho errado. É o caminho da desqualificação e do caos, da insegurança jurídica. Mas eu espero que esses jovens tenham a serenidade, a tranqüilidade, de analisar melhor o quadro e ver que hostilizar o Exame de Ordem não é o melhor caminho.
P- Com a redução de vagas nas faculdades, o índice de aprovação na OAB alcançará um patamar maior?
R- É possível, mas isso teremos que avaliar no próximo Exame de Ordem, realizado após essa medida do Ministério da Educação. A nossa expectativa é de que realmente a aprovação alcance um patamar maior. Nós não ficamos contentes com o alto índice de reprovação, pelo contrário. Entendemos o drama desses bacharéis de Direito que querem ser advogados e não conseguem êxito no Exame de Ordem, mas temos que aguardar para ver efetivamente quais serão os efeitos da medida do Ministério da Educação.
P- Quais serão as mudanças exigidas para as faculdades na área do ensino jurídico, além da redução das vagas?
R- Compreendo essa medida do MEC como uma atitude inicial - muito bem-vinda, mas insuficiente. A precariedade dos cursos de Direito, de uma boa parte desses cursos espalhados pelo país, exige uma ação mais efetiva do Governo em termos de fiscalização - tanto no momento de autorizar a criação desses cursos, quanto no acompanhamento das suas atividades, que pode culminar até no seu fechamento. Então, nós esperamos que essa redução do número de vagas venha acompanhada, posteriormente, por outras medidas no campo da fiscalização, no sentido de efetivamente assegurar uma melhora na qualificação desses cursos. Quem sofre com isso são os estudantes, que se iludem com a perspectiva de vir a ser advogado e acabam não passando pelo Exame de Ordem.