Revista Veja: Projeto nota E
Brasília, 14/08/2011 - A matéria "Projeto nota E", de autoria do repórter Luis Guilherme Barrucho, foi publicada na revista Veja desta semana (edição 2230 - ano 44 número 33):
"Mais de 1 00000 bacharéis em direito se submetem a cada ano ao exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) - a mais difícil etapa na jornada de um aspirante a advogado. Os que fracassam não recebem o registro profissional e, portanto, não podem atuar nos tribunais. Pois essa peneira que vem funcionando há quase cinco décadas para barrar os recém-saídos das faculdades despreparados para cumprir a função corre o risco de ser extinta. Em ato inédito. o Supremo Tribunal Federal (STF) julgará, nas próximas semanas, o mérito de uma ação que pede o fim da obrigatoriedade da prova. Ajuizada por um bacharel gaúcho (ele próprio já reprovado no exame), a ação se ancora no argumento de que o teste não passaria de uma sucessão de "pegadinhas" e questões malfeitas, incapazes de diagnosticar a competência de alguém para advogar. Estaria af a razão para o retumbante fiasco dos estudantes - 89% foram reprovados na última edição (o triplo da média americana em teste semelhante). Trata-se de mais uma dessas discussões que escamoteiam o principal: a falta de qualidade da maioria das faculdades. "Os jovens estão recebendo o diploma sem saber o básico do direito. E isso que o exame da OAB mostra de forma inequívoca". resume Ophir Cavalcante, presidente da ordem.
Entre as oitema questões de múltipla escolha. chama atenção o fato de os postulantes a advogado errarem até mesmo aquelas sobre conceitos supostamente ensinados nos primeiros anos de curso. A maioria desconhece, por exemplo, o princípio da isonomia (segundo o qual todos são iguais perante a lei) e não sabe que uma legislação só vale a partir da data em que é publicada. Nesse cenário. não chega a espantar que apenas uns poucos acertem c4 lote de perguntas mais complexas, que testam dos candidatos o domínio de leis específicas. Dos poucos que passam à segunda fase (18% dos 121000 inscritos no exame ainda em andamento) é exigida uma argumentação jurídica por escrito sobre um tema predeterminado. O festival de erros de ortografia - como os recorrentes "inlícito" e "prossedimento" - e as incorreções primárias - como endereçar-se ao "desembargador" do STF, e não ao ministro - dão a dimensão do desastre. "Seria um desserviço que essa massa de jovens com tantas lacunas ingressasse no mercado", diz o advogado Marcelo Viveiros de Moura, sócio do escritório Pinheiro Neto.
Para se ter uma medida do problema, noventa das 610 instituições cujos egressos se submeteram à última prova da OAB não contabilizaram um único aprovado. Um quadro desolador que reforça aquilo que o Ministério da Educação (MEC) vem sinalizando com suas avaliações. No levantamento mais recente, 12% dos 1 174 cursos de direito, todos privados, patinaram em notas 1 e 2 (de uma escala que vai até 5). Significa que eles se situam na zona do ensino sofrível. aquém do adequado. O MEC, apesar de reconhecer o cenário, peca pela leniência. Até hoje, apenas três faculdades de direito foram forçadas a fechar as portas. As que fracassaram na última avaliação oficial foram penalizadas com a redução no número de vagas, mas continuam ativas. Elas ganharam um prazo de três anos para apresentar melhoras, mas, até lá, poderão seguir ministrando aos estudantes uma formação de nível ruim. Os cursinhos que preparam alunos para o exame da OAB estão repletos de bacharéis como Emersom Gomes Fernandes, de 27 anos. Graduado na Fundação Universidade Regional de Blumenau (Furb) e prestes a tentar o registro profissional pela sétima vez, ele reconhece: "Eu me formei sem saber questões essenciais para a prática da profissão".
Alguns adversários da prova batem na tecla de que se trataria de uma prática inconstitucional. uma vez que feriria a liberdade de exercício profissional. Anexo à ação que tramita no STF. reside um parecer do Ministério Público Federal que vai nessa linha e ainda levanta a questão: por que só no direito existe uma barreira desse tipo? Todos os países mais ricos adotam sistemas parecidos - muitas vezes até mais rigorosos. Em certos casos. são exigidos dos recém-formados estágios em escritórios de advocacia e apresentações diante de tribunais de verdade, tudo como pré-requisito para o registro profissional (veja o quadro abaixo). Há duas razões para que persistam tantos filtros no direito. A primeira tem a ver com uma tradição cultivada pelas fortes corporações de advogados desde o século XIX. A segunda é de cunho mais filosófico e diz respeito à própria natureza do ofício: advogados são guardiões de valores fundamentais, como as liberdades individuais, o direito à próprio de e a presunção de inocência. Se os guardiões são fracos. a democracia também se enfraquece. Terminar com exame da OAB, aliás. é um dos sonhos de certa esquerda, para a qual o direito deve perder seu caráter e sua base de valores formais e éticos em favor de uma excrescência chamada "direito achado na rua". Uma porteira aberta para os incompetentes e os ideólogos - e que também facilita a vida daqueles que, sob a toga de advogados, não passam de especuladores do mercado 11nanceiro, de montadores de esquemas para enganar investidores e usar as brechas da lei para enriquecer a si próprios e a seus clientes pilantras. Um fenômeno americano que ocorre mesmo com todos os filtros existentes naquele país e ameaça espraiar-se no Brasil. A rua nesse caso, e Wall Street. Mais uma vez. a esquerda alia-se aos espertalhões para fulminar a ética e o mérito". (A matéria é de autoria do repórter Luis Guilherme Barrucho e foi publicada na revista Veja)