Democracia é ‘disfarce ideológico’, diz Comparato
Campinas, 20/11/2005 - A democracia no Brasil ainda é um mero “disfarce ideológico” e não apresentou nenhum avanço na gestão de Luiz Inácio Lula da Silva. A argumentação é do jurista Fábio Konder Comparato, um dos líderes da Campanha Nacional em Defesa da República e da Democracia, que será lançada amanhã (21) em Campinas, em meio a uma das maiores crises no setor político que o País já enfrentou. A campanha tem como objetivo ampliar a participação popular nas decisões políticas. Em outras palavras: dar poder ao povo.
Professor titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), presidente da Comissão de Defesa da República e da Democracia do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e advogado de acusação no impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Mello, Comparato defende que “não adianta reformar o sistema, pois ele continuará corrupto”. “É preciso mexer na estrutura. O Brasil sempre foi um sistema em que o povo elege, mas não decide”, justificou.
Para o jurista, o que existe no Brasil “é uma oligarquia disfarçada de democracia” e o povo “está desorganizado porque sempre viveu estado de sujeição. Sempre foi tratado como menor, como um alienado mental que não sabe expressar as suas vontades”. E a democracia, segundo ele, não avançou no governo Lula. “Foi uma frustração geral”, disse.
Depois de viver de perto o impeachment de Collor, Comparato é mais cauteloso em relação às denúncias que envolvem o governo do PT. Embora o jurista acredite que há acusações graves e que Lula esteja sofrendo conseqüências de vários atos que ele próprio cometeu, “a OAB e outras entidades da sociedade civil não têm porquê entrarem na batalha pelo impeachment porque elas estarão fazendo o jogo dos partidos da oposição, mas não cumprindo a vontade popular”. Comparato alerta: “Ou o povo se organiza e pressiona, ou quem está no poder não vai ceder nenhum milímetro de suas prerrogativas, ou falsas prerrogativas”.
A Campanha Nacional em Defesa da República e da Democracia é suprapartidária, de iniciativa da OAB Nacional, Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e Escola de Governo. Confira abaixo a entrevista que Comparato concedeu ao Correio Popular:
P- O senhor afirma que a democracia no Brasil ainda é um mero disfarce ideológico. Por quê?
R- Democracia significa soberania popular e soberania significa o poder de controle do povo sobre todos os governantes, em qualquer ramo do Estado em que eles se encontram. No Brasil isso nunca existiu. O que existe é uma oligarquia disfarçada de democracia. O fato de o povo poder votar livremente nas eleições não significa que ele exerça controle sobre o governante. Ele elege, mas não pode destituir e nem exigir que os governantes cumpram seus deveres constitucionais no que diz respeito à saúde, educação, moradia, previdência. Tudo isso fica a critério dos governantes e isso, evidentemente, não é democracia.
P- A democracia no Brasil teve algum avanço no governo Lula?
R- Nenhum.
P-E o senhor esperava algum avanço?
R-É claro que todos esperavam. Não só os que votaram nele, como os que não votaram. Foi uma frustração geral.
P-E qual deve ser o primeiro passo para acabar com esse disfarce ideológico que o senhor acredita existir?
R-Nós temos que começar desbloqueando os mecanismos institucionais que foram criados pela Constituição Federal para a manifestação da soberania popular: o plebiscito, o referendo e também a iniciativa popular. Por que desbloquear? Porque o Congresso Nacional se arrogou do direito de decidir quando e sobre quais matérias o povo pode decidir. Isso, evidentemente, é uma usurpação da soberania. A Constituição diz, no artigo 14, que plebiscito e referendo são manifestações da soberania popular no mesmo nível que o sufrágio eleitoral. Ora, se o Congresso decide arbitrariamente que só ele pode decidir quando o povo está autorizado a participar de um referendo ou plebiscito, também poderá dizer amanhã que só ele decidirá quando haverá eleições ou quando o povo vai participar de eleições.
P-Mas há uma pré-disposição do Congresso e do próprio governo em ampliar essa participação popular nas decisões do País?
R-Certamente não. Ou o povo se organiza e pressiona ou quem está no poder não vai ceder nenhum milímetro de suas prerrogativas ou, como acabei de dizer, falsas prerrogativas.
P-E a população tem condição de entender isso?
R-O povo está desorganizado porque sempre viveu estado de sujeição. Sempre foi tratado como o menor, como um alienado mental que não sabe expressar as suas vontades. Então, o povo sempre foi tutelado. Justamente, para que haja essa mudança, e uma mudança radical, é preciso alterar completamente o modo de fazer política. Hoje os agentes políticos e os partidos vão ao povo para pedir que o povo lhe dê poder. Agora, trata-se de fazer com que o povo seja instruído e organizado para exercer a sua soberania, de modo que a ação dos agentes públicos deve ser altruísta e não egoísta como tem sido até agora. Para tanto, é preciso não só mudar a índole dos partidos políticos, o que vai ser muito difícil, mas, sobretudo, é preciso fazer que entrem na arena política outras organizações, sejam elas organizações não-governamentais (ONGs) ou oficiais, como a OAB, que trabalham não para si próprios, mas em prol do bem comum do povo.
P-Mas é preciso um período de transição para mudar o perfil da população atual para o perfil defendido pelo senhor...
R-Não há transição. O que há é um avanço contínuo. Nunca se pode dizer que o povo é perfeitamente republicano e democrático. O que é preciso é começar, mas até agora não se começou.
P-O senhor foi advogado de acusação no impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Mello (1992). Como o senhor avalia o momento do presidente Lula?
R-Ele está sofrendo as conseqüências de vários erros que ele próprio cometeu. Mas é preciso ter em mente o fato de que o impeachment é um processo político, ou seja, ligado diretamente ao Congresso Nacional, e que nós, que não somos partido político, não podemos nos dobrar às conveniências dos partidos políticos. No caso do Collor, o impeachment foi apoiado pela maioria esmagadora do povo. Não é o caso atual. É uma constatação de fato. A OAB e outras entidades da sociedade civil não têm porquê entrarem nesta batalha pelo impeachment porque elas estarão fazendo o jogo dos partidos da oposição, mas não cumprindo a vontade popular.
P-O caso do presidente Lula não é caso de impeachment?
R-Acho que há acusações graves que estão previstas na lei 1.079 de 1950 e que caracterizam crime de responsabilidade. Se essas acusações serão provadas ou não, é outra coisa. Mas existem acusações graves. Mas, como eu disse, não é o povo quem está julgando. Temos que ter uma certa cautela porque o Congresso Nacional pode decidir essa matéria em proveito exclusivo dos partidos de oposição e o povo continuará sempre marginalizado. Não foi o que aconteceu no Caso Collor.
P-O Brasil enfrenta o seu pior momento no que diz respeito à corrupção?
R-Não, longe disso. No regime militar a corrupção foi muito maior, apenas não havia divulgação, por razões óbvias. As privatizações do governo Fernando Henrique (Cardoso, ex-presidente da República, do PSDB) foram todas marcadas pela corrupção. O que acontece é que agora o povo está mais consciente. O fato de a corrupção no governo Lula ter sido menor do que nos outros governos não significa que temos de ser condescendentes.
P-A OAB ajudou a liderar o pedido de impeachment de Collor. A ordem agora é cautela?
R-A OAB não pode ser tributária de partidos da oposição. Tem de defender o bem comum do povo. Pelo seu estatuto, é obrigada a defender o Estado democrático de direito, que é aquele em que o povo exerce uma soberania efetiva e não meramente simbólica. Agora, se amanhã se verificar que a maioria do povo apóia o afastamento do presidente da República, a OAB vai reconsiderar essa questão. De qualquer modo, é preciso saber que nesta campanha nacional em defesa da República e da democracia, estamos apresentando ao Congresso Nacional, mais especificamente ao Senado Federal, uma Proposta de Emenda Constitucional instituindo a revogação popular dos mandatos eletivos, ou seja, assim como o povo é chamado a eleger, ele também pode ser convocado, por iniciativa popular ou excepcionalmente, por iniciativa da maioria absoluta do Congresso Nacional, a se pronunciar sobre a manutenção dos eleitos. É aquilo que os americanos chamam de recall, que já existe em 14 estados da federação americana.
P-Como o senhor avalia o andamento das comissões parlamentares de inquérito?
R-Elas estão produzindo um bom trabalho. Não vou negar. O que acontece é que a organização do Congresso Nacional é muito deficiente porque o parlamento tem, em todos os países, duas funções: legislar e fiscalizar o Executivo. Entendo que para o exercício dessas duas funções é preciso haver uma especialização, Casas especializadas no Congresso. Isso implicaria uma mudança constitucional importante. Ou seja, nós precisaríamos criar uma Casa legislativa e uma Casa fiscal. O que está acontecendo agora é que o trabalho legislativo do Congresso está paralisado. Isso atrapalha até um trabalho fundamental do parlamento que é votar o Orçamento. As CPIs são absolutamente necessárias, mas é preciso que seus trabalham não impeçam o exercício da função legislativa.
P-Legalmente falando, qual a análise que o senhor faz das CPIs?
R-De modo geral, não tenho achado que tem havido excessos. As irregularidades são menores, mas, evidentemente, aqueles prejudicados recorrem ao Judiciário com muita razão.
P-O que o senhor acha da proposta de haver uma constituinte em 2007 para alterar alguns pontos polêmicos da Constituição?
R-Acho isso extremamente perigoso. Quem é que vai eleger os membros desta constituinte? Infelizmente, o poder econômico vai ter uma influência marcante. E quem nos garante que essa atividade faça avançar a democracia? O problema todo, que não está nesta proposta, é que nós precisamos avançar a democracia direta. Eles (os parlamentares) podem tentar avançar o sistema eleitoral, o sistema partidário — aliás, eles só fazem isso quando são pressionados pelos escândalos —, mas isso não vai, sustento, afirmo, argumento, avançar nem um milímetro a nossa democracia.