Brasília - Confira o artigo de autoria do presidente
nacional da OAB, Claudio Lamachia, publicado nesta quinta-feira (29), no Jornal O Estado de S. Paulo.
Justiça em primeiro lugar
Claudio Lamachia, advogado e presidente nacional da OAB
A crise que envolve o presidente da República – e é objeto
de um pedido de impeachment da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) – suscitou
uma discussão lateral sobre a conveniência de questionar o chefe do governo em
meio a um quadro de recessão econômica. É uma tese sem lastro moral, de fundo
meramente utilitário, que, levado ao extremo, revoga o artigo 5.º da
Constituição, segundo o qual “todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza (...)”. Usou-se de idêntica argumentação quando do processo
contra a presidente Dilma Rousseff. Nada de novo, pois.
A crise que já há alguns anos sacode o País, antes de ser
política, econômica e social – e é isso tudo –, é bem mais grave que isso: é
moral. A profusão de agentes públicos envolvidos em ilícitos, como jamais se
viu em qualquer tempo, distanciou a sociedade daqueles cuja missão
institucional é representá-la. Quando isso acontece, tem-se a desordem, o
descrédito das instituições leva à anomia e, por essa via, à desobediência
civil. Ao caos. O Brasil só escapará a essa tragédia, que as pessoas sensatas
têm o dever de evitar, se não descuidar do único antídoto capaz de debelá-la: a
justiça – sem messianismos de espécie alguma, respeitando o devido processo
legal, com ampla defesa e direito ao contraditório. Sem isso não haverá
justiça, mas justiçamento.
Por essa razão, a OAB ingressou em março com uma Ação de
Descumprimento de Preceito Fundamental para que o Supremo Tribunal Federal, nos
termos da Constituição, ofereça interpretação do artigo 260 do Código de
Processo Penal, que trata de conduções coercitivas. E o fez não para dificultar
as investigações, mas para impedir os excessos que a deslegitimem.
A condução coercitiva cerceia a liberdade de ir e vir do
indivíduo, constrangendo-o a um depoimento não previamente marcado, o que torna
inviáveis os mais mínimos arcabouços de defesa, por impedi-lo de obter a
orientação técnica. Trata-se, pois, de garantir a ampla defesa, que não permite
relativizar nenhum direito ou garantia fundamental, sob pena de se abrir uma
janela para o abuso e a arbitrariedade do Estado policial.
O combate ao crime ao arrepio da lei constitui outro crime e
não pode ser tolerado sob nenhum pretexto. É o outro lado da mesma moeda: de um
lado, a impunidade em nome da estabilidade econômica e, do outro, a supressão
do rito judicial em nome da eficácia punitiva. Nas duas hipóteses se sabota a
justiça.
A tentativa de dar cunho ideológico, partidário ou
corporativo ao processo de saneamento moral do País não faz sentido, venha de
onde vier: Ministério Público, Poder Judiciário, Legislativo ou Executivo.
Moral não tem lado nem ideologia, tem princípios. Justiça não é de direita nem
de esquerda, simplesmente é, nos termos da lei.
Está – ou não será justiça – acima do conflito das partes,
do duelo dos partidos e das ideias, exatamente por ter a missão de garanti-los,
mediante regras claras e universais. Ou as regras valem para todos – ou não
valem para ninguém. Como num jogo de futebol, o juiz não joga: garante o jogo.
Se houver parcialidade, descumprimento das regras, o jogo é ilegítimo.
Historicamente, a classe dirigente brasileira postulou
privilégios inaceitáveis. Deu cabimento à sátira com que Millôr Fernandes se
referia ao artigo 5.º da Constituição: “Todos são iguais perante a lei... mas
alguns são mais iguais”.
Essa distorção, que formou uma cultura nefasta – e agora
chega ao paroxismo –, está no cerne da atual crise. A população, padecendo os
rigores de uma recessão sem precedentes, com 14 milhões de desempregados,
projeta suas expectativas na justiça. Não quer pagar uma conta que não é sua –
nem tem a segurança de que, ainda que faça os sacrifícios que lhe pedem, a
dívida será mesmo honrada. Os precedentes dão-lhe razão.
Só a justiça – a válvula de escape que resta – restabelece a
ordem. Não importa, nesses termos, quais sejam os suspeitos, sobretudo se entre
eles está o presidente da República; quanto mais importantes os personagens,
mais urgentes e indispensáveis se tornam os esclarecimentos, sob pena, aí sim,
da ingovernabilidade.
Supor que é possível reconstruir a economia sem sanear a
política – e sanear esta sem enquadrar os que nela delinquiram – é não entender
nada de política e economia. Quem não perceber que um novo País está sendo
forjado, em bases morais mais sadias, já está fora da realidade – e perdeu a
sintonia com a História.
O advento da era da informação, com a internet e suas redes
sociais, produziu uma sociedade em sinergia, conectada mesmo. E essa é uma
viagem sem volta. O povo não está apenas nas ruas, está em rede. Quer
transparência e não é mais agente passivo da História. É protagonista.
A OAB, em seus 87 anos de existência, jamais se omitiu em
relação à vida pública brasileira. É a única entidade não estatal que tem o
dever estatutário – e seu estatuto é lei federal – de zelar pelo Estado
Democrático de Direito e pela boa aplicação das leis. Por isso se tornou
porta-voz da sociedade civil e desde sua fundação tem tido grande protagonismo
na cena política, sem, no entanto, tomar partido.
Advém daí sua força moral. Foi interlocutora da sociedade,
por meio de seu então presidente, Raymundo Faoro, quando, na década de 1980, o
regime militar quis negociar os termos da redemocratização. Desse processo
resultaram o fim da censura, o restabelecimento do habeas corpus, as eleições
diretas e, em suma, a assim chamada Nova República.
Já nessa etapa, além de se manter intransigente no combate à
corrupção, esteve à frente dos processos de impeachment que afastaram Fernando
Collor e Dilma Rousseff – agora faz o mesmo com Michel Temer – e foi
protagonista novamente na defesa do habeas corpus quando da apresentação das
dez medidas de combate à corrupção. Pela diversidade dos partidos e dos perfis
ideológicos desses personagens, vê-se que não age facciosamente. O partido da
OAB é o Brasil e sua ideologia, a Constituição.