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Artigo: O crime avança sobre o Judiciário

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2003 às 11h46

Artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, edição de 19/02/2003

por Gaudêncio Torquato

Ao trazer para a mesa do debate, mesmo que de maneira singela, a denúncia de que o crime organizado se está aproximando perigosamente do Judiciário, o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, põe em evidência uma questão que está a merecer cuidadoso exame de todos os que se preocupam com a precária saúde das instituições. A onda criminosa, como a metástase de um câncer, propaga-se rapidamente pelo organismo nacional, infiltrando-se até no Poder Judiciário. A constatação é grave.

Afinal de contas, trata-se de um Poder que é o mais identificado com a virtude da moral. Representa o altar mais elevado e nobre da verdade e da justiça. Infelizmente, acusações, mesmo que isoladas, atingindo um ou outro de seus pares, acabam maculando a imagem da instituição. Neste instante em que se inaugura um novo ciclo institucional, a imagem de um Judiciário apequenado constitui um dos maiores danos à alma nacional, pois as conexões estabelecidas entre juízes e criminosos só servirão para corroborar o sentimento, já estratificado, de que a justiça, no Brasil, é privilégio de minorias.

As denúncias envolvendo magistrados do Superior Tribunal de Justiça no caso de um suposto esquema de venda de habeas-corpus em favor de criminosos, e que mereceram da OAB pedido de afastamento temporário dos denunciados, estão a clamar por rigorosa apuração. O pior que pode ocorrer para a credibilidade da instituição é fazer vista grossa à situação. Nenhuma autoridade, por mais alta que seja, pode escudar-se sob o manto sagrado do cargo. O Judiciário, que, sem demérito aos outros, é o melhor dos Poderes da República, seja pela identidade de seus integrantes, seja pela nobreza de suas funções constitucionais, há de dar o exemplo. Ao abrir-se para a investigação, o Judiciário estará dando uma lição de grandeza, incentivando a transparência dos pulmões judiciais, em todas as instâncias, gerando um fato que seguramente terá repercussão positiva e inaugurando uma nova era de respeito, credibilidade e deferência aos administradores da justiça.

A manifestação preocupante do ministro Márcio Thomaz Bastos deve ser entendida como uma espiada na completa escuridão de um túnel que corre por baixo de todo o território nacional. Sua observação literal é a de que, "em muitos Estados, os tentáculos do crime organizado estão chegando às portas do Poder Judiciário". Não se trata de constatação irresponsável feita por leigo, mas da voz categorizada de um experimentado advogado que exerce o mais alto cargo do Executivo nos domínios da administração da justiça. Ora, procurando ir fundo nas causas que levam o crime organizado a se infiltrar nas entranhas do Judiciário, vamo-nos deparar, inicialmente, com a própria crise do Estado brasileiro, aqui posta em termos de desorganização, precária governabilidade, inadequada repartição de recursos e encargos, deficiências de estrutura e quadros, políticas de clientelas, patrimonialismo, grupismo e, na esteira dessas mazelas, mancomunação de interesses, apropriação da coisa pública, conivência entre atores políticos e agentes da lei e alto grau de cumplicidade entre os feitores do poder invisível. Uma pérfida malha criminosa grassa nas três instâncias da administração pública.

Não é o caso de tomar a parte pelo todo. Mas não se pode deixar de aduzir que, se um dos mais altos tribunais é atingido por denúncias, na esfera das instâncias mais baixas a probabilidade de existência de teias de interesses escusos é bem maior, justificando-se, assim, a aflição do ministro da Justiça. Lembre-se que, em muitos Estados, as práticas administrativas dos Poderes são muito influenciadas por costumes políticos desenvolvidos no seio de famílias e grupos. Tem sido comum a indicação política de juízes para as cortes superiores, a ponto de se identificarem facilmente os patrocinadores políticos de espaços de mando e poder na área da Justiça.

A verdade é que a figura do juiz, em nosso país, não se cerca mais daquela aura sagrada que tanto reverência impunha no passado. Em tempos idos, cultivava-se admiração pela liturgia da Justiça. Os juízes assumiam na plenitude aqueles traços nobres que Bacon tão bem descreveu em seus ensaios:

"Os juízes devem ser mais instruídos do que sutis, mais reverendos do que aclamados, mais circunspetos do que audaciosos. Acima de todas as coisas, a integridade é a virtude que na função os caracteriza." O rebaixamento dos níveis educacionais, dos padrões técnicos e da qualidade dos recursos humanos, o descumprimento da tripartição dos Poderes, pela canibalização recíproca de espaços e funções, e o arrefecimento de valores fundamentais (o respeito à lei, à disciplina e à autoridade), a negligência com o dever, a escassez de solidariedade, a falta de seriedade e a indignidade pessoal se fazem presentes na festa de banalização da vida pública. Tudo tem ficado mais assemelhado. E pior.

Atingido pela sujeira que borra a moldura de todas as instituições, sem exceção, o juiz ainda tem de enfrentar um calvário particular, a via-crúcis da crise no seu espaço profissional, determinada pelos dilemas que lhe são impostos pelo caráter dual do Estado brasileiro. De um lado, o Estado liberal, fincado nas bases do equilíbrio entre os Poderes, no império do direito e das garantias individuais. De outro, o Estado assistencial, de caráter providencial, voltado para a expansão dos direitos sociais, ajustados e revigorados pela Constituição de 88. Os resultados vão bater na mesa do juiz: enxurradas de demandas crescentes e repetitivas em questões de toda ordem - trabalhistas, tributárias e previdenciárias - para milhares de reclamatórias nas instâncias da Justiça, que visam a repor perdas salariais de planos econômicos malsucedidos. Esse é um pequeno exemplo do cipoal que tem de enfrentar na lide cotidiana.

Por tudo isso, chegou a hora da grande verdade para os tribunais. Ou o Judiciário se estrutura para atender às demandas de uma sociedade cada vez mais consciente e participativa ou acabará por ser afundado na vala comum do descrédito. Não há meio termo. Para ganharem o que merecem e precisam, as Cortes, respirando o cheiro do tempo, hão de se abrir para a sociedade, mostrando que nada têm a esconder. Hão de fortalecer a imagem de guardiãs da lei. Estabelecer ou não um controle externo do Judiciário, essa é uma questão que deve ser discutida sem demagogia, com sinceridade de propósitos, buscando responder a todas as indagações, inclusive a esta, que causa polêmica: quem controlará os controladores? O câncer que ameaça os pulmões do Judiciário tem de ser extirpado. Antes que se propague. Que os magistrados do STJ comecem dando o exemplo, preparando bisturis e pinças.

Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor-titular da USP e consultor político.

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