Anistia não é amnésia, diz Cezar Britto em ato da UNE no Rio
Rio de Janeiro, 15/05/2008 - "Anistia não é amnésia e nem muito menos esquecimento. Não é simplesmente dizer que o que passou é passado e que não mais devemos dele tratar". A afirmação foi feita hoje (15) pelo presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Cezar Britto, ao participar do ato político promovido pela União Nacional dos Estudantes (UNE) no Rio de Janeiro, inaugurando a "Caravana da Anistia" - uma série de sessões de julgamentos de processos de anistia de presos políticos durante o regime da ditadura militar. Na ocasião, Britto afirmou que só será possível uma reconciliação entre o Estado e as vítimas de tortura e censura por meio da anistia quando a sociedade brasileira conhecer integralmente o que aconteceu, de fato, nos porões da ditadura.
"Isso integralmente, sem dados secretos, de cara limpa, como o Estado está a fazer aqui, ao reconhecer que vários de nós foram vítimas da lógica perversa e autoritária que vigorou na ditadura militar". O presidente da OAB lembrou aos estudantes e autoridades presentes ao ato político que a entidade possui duas ações judiciais em curso relacionadas à questão da anistia e aos arquivos relacionados ao regime militar. A primeira delas visa tornar inconstitucional o decreto que ainda mantém em segredo o que aconteceu na Guerrilha do Araguaia. A segunda, ajuizada perante o Superior Tribunal Militar (STM), é uma ação criminal para que se punam aqueles que queimaram mais recentemente arquivos relacionados ao período da ditadura. "Esses, definitivamente, não estão beneficiados pela Lei de Anistia", lembrou Cezar Britto.
No ato público, o presidente da OAB se dirigiu ao ministro da Justiça, Tarso Genro, afirmando que a entidade confia muito na possibilidade de que os resquícios de segredo e arquivos inacessíveis da ditadura sejam, divulgados o mais rápido possível. "Isso para que conheçamos todos aqueles que praticaram tortura e para que nunca mais se faça isso com um cidadão brasileiro", afirmou. "Não queremos jamais que esse período volte. Até por sobrevivência democrática, não podemos permitir que esse regime volte."
O ato político foi realizado no terreno na Praia do Flamengo, nº 132, no local onde ficava a antiga sede da UNE e foi completamente destruída no período da ditadura militar e onde a entidade pretende erguer sua nova sede. Também participaram do ato o presidente da Seccional da OAB do Rio de Janeiro, Wadih Damous, a presidente da UNE, Lúcia Stumpf, o presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Maurício Azedo, e o presidente da Comissão Nacional de Direitos Sociais do Conselho Federal da OAB, Roberto Caldas.
A seguir a íntegra do discurso proferido pelo presidente nacional da OAB, Cezar Britto, durante o ato da UNE:
"É muito bom saber que os estudantes continuam mobilizados e é muito bom saber que o Estado brasileiro está aqui neste momento, por meio do ministro da Justiça, Tarso Genro. Estamos aqui para falar de anistia. A anistia é um dos instrumentos que a sociedade tem para se reconciliar consigo mesma. É a possibilidade de reescrevermos a nossa história, exatamente agora, vinte anos depois da edição da Constituição Federal que quis pôr fim àquele período da ditadura, àquele período em que as coisas eram resolvidas com tortura. A anistia é a possibilidade de dizermos, para nós mesmos e para todas as pessoas, que quem estava certo era aquele que não queria a censura, que estava certo aquele que lutou para que o Brasil não fosse entregue ao FMI, que o tempo todo estava aqui. Estava certo aquele que se insurgiu contra a tortura e disse: não queremos mais esse tipo de prática. É a possibilidade de dizer que nós estávamos certos e que eles estavam errados.
Mas a anistia hoje, no mundo mais democrático, é o Estado dizendo e reconhecendo que errou no passado. É o Estado vindo aqui para dizer, olhos nos olhos daqueles que foram vítimas: me perdoe, eu errei. Me perdoe e não vou repetir mais aquelas práticas. A anistia é a coragem cívica de dizer que aquele País não era o Brasil que sonhamos, não é o Brasil que queremos.
Mas a anistia não é, também, amnésia e nem muito menos esquecimento. Não é simplesmente dizer que o que passou é passado e que não mais devemos dele tratar. É por isso que a OAB ajuizou duas ações judiciais neste sentido. A primeira visa tornar inconstitucional o decreto que ainda torna segredo o que aconteceu na Guerrilha do Araguaia. Fizeram com que fossem enterradas pessoas e não querem dizer ao Brasil o que aconteceu ali. Agora entramos, junto ao Superior Tribunal Militar (STM), com uma ação criminal para que se punam aqueles que queimaram mais recentemente arquivos relacionados ao período da ditadura. Esses, definitivamente, não estão beneficiados pela Lei de Anistia.
É isso o que queremos: uma reconciliação real com o nosso passado. E isso só será possível quando soubermos o que aconteceu. Isso integralmente, sem dados secretos, de cara limpa, como o Estado está a fazer aqui, ao reconhecer que vários de nós foram vítimas da lógica perversa e autoritária que vigorou na ditadura militar.
Nós da Ordem também fomos vítimas da ditadura. Com sangue, perdemos uma funcionária nossa no auge da ditadura. Não queremos jamais que esse período volte. Até por sobrevivência democrática, não podemos permitir que esse regime volte.
Nós confiamos muito, ministro Tarso Genro, que devido a seu passado e à sua luta, esses resquícios de segredo que ainda permanecem em silêncio caiam o mais rápido possível em função da liberação dos arquivos da ditadura. Isso para que conheçamos todos aqueles que praticaram tortura e para que nunca mais se faça isso com um cidadão brasileiro. Esperamos que a presença hoje do Estado aqui, simbolicamente, na casa que acabou sendo destruída no período do regime militar, possa nos acenar que ditadura nunca mais."