Artigo: Reclusos, surdos e mudos
Rio de Janeiro, 07/12/2010 - O artigo "Reclusos, surdos e mudos" é de autoria do presidente da Secional da OAB do Rio de Janeiro, Wadih Damous, e foi publicado na edição de hoje (07) do jornal O Globo (RJ):
"Somos uma democracia cultural? Em tese, a resposta positiva parece simples, óbvia mesmo. Afinal, orgulha monos da riqueza de nossa diversidade, das multi facetas nos usos, costumes, crenças e manifestações características de nossa brasilidade. Essa a vitrine que oferecemos aos outros, os turistas ou muito distraídos.
Porque os atos e fatos de violência que se sucedem nas cidades brasileiras, grandes ou pequenas, de todas as regiões do Brasil, são demonstrações assustadoras de uma sociedade autoritária, elitista e preconceituosa à qual pertencemos, mas repudiamos.
Sucedem-se com tal velocidade que logo esquecemos a barbárie da semana que passou para nos ocuparmos, ainda com algum espanto e incômodo, da notícia fresquinha de mais um crime causado pela intolerância de alguém. Ou pior, o próprio Estado.
Assim, ficamos sabendo que um rapaz levou um tiro após a Parada Gay realizada na Zona Sul do Rio de Janeiro, onde milhares de pessoas se manifestavam exatamente para reivindicar seus direitos de cidadania. O acusado pelo crime covarde, um militar do Exército. E que, na capital paulista, cinco jovens de classe média, a maioria de 16 e 17 anos, atacaram um lavador de carros e um estudante que andavam pela rua.
Pesquisando um pouco, bate à nossa cara a estatística da homofobia aferida pelo Grupo Gay da Bahia, dando conta de que os assassinatos de homossexuais aumentaram 62% de 2007 para cá. Nos números da secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos do Rio, a cada dia um é morto no país, a maioria com a face desfigurada.
Imbuída desse espírito de exclusão social, uma estagiária de Direito pregou, no Twitter: "Faça um favor a São Paulo, mate um nordestino afogado", evidenciando seu preconceito. E, naquela região, a perseguição àqueles que ninguém quer ver, os moradores de rua, alguns vítimas do crack, já matou 32 pessoas na capital alagoana desde o início do ano. Aparentemente, uma operação de extermínio, sistemática como o desamparo dessa população pelo Estado.
O mesmo Estado que enfia na cadeia pública de Manaus 828 detentos onde cabem 104. Ou, na Polinter de Neves, aqui ao lado, em São Gonçalo, calor chegando a 57 graus na cela com 80 presos para 13 camas. Situação tão extrema de desprezo à vida humana que levou o líder do movimento Rio da Paz, Antonio Carlos Costa, ao desconcertante questionamento: "É bom para a segurança pública torturar o preso?"
Passando da segurança para a saúde, a realidade da criminalização da pobreza volta a nos esbofetear com a mais nova - e já crônica - notícia: a crise nos CTIs é tão grave que nem mandados judiciais de internação são capazes de garantir vaga nos hospitais públicos. Como O GLOBO denunciou, menos de 60% dessas ordens da Justiça foram cumpridas entre novembro de 2008 e outubro de 2010. De 1.953 pacientes, muitos desistiram e outros morreram na fila, quase anonimamente. Quem resumiu o espírito atual da sociedade foi uma leitora, admitindo se, a cada dia, mais reclusa, surda e muda. Vamos nos tornar assim?"