OAB rejeita projeto do Senado que altera prescrição penal
Brasília, 05/12/2004 - O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, em sua última sessão deste ano, presidida por Roberto Busato, aprovou por unanimidade parecer opinando pela rejeição do projeto de lei em tramitação no Senado, que dá nova redação ao parágrafo 2° do artigo 110 do Código Penal (decreto-lei n° 2.848/40). O parecer teve como relator o conselheiro federal da OAB pelo Rio Grande do Sul, Cezar Roberto Bitencourt. De autoria do senador Pedro Simon (PMDB-RS), o projeto quer impedir que a prescrição possa ter como termo inicial data anterior à do recebimento da denúncia ou queixa.
“A prosperar a pretensão do digno e culto Senador Pedro Simon, estará oficializado o engavetamento de inquéritos policiais, CPIs e todo e qualquer procedimento criminal, para serem ajuizados quando melhor aprouver a determinadas autoridades”, sustenta o parecer aprovado pelo Conselho Federal. “Assim, pairaria sobre eventual investigado, que ainda é presumidamente inocente, a Espada Dámocles a que nos referimos ao longo deste trabalho, com a ameaça ad perpetuam, do poder repressivo estatal”, acrescenta Cezar Bitencourt em seu voto, apoiado unanimimente pelos conselheiros.
A seguir, a íntegra do parecer do Conselho Federal da OAB:
I - P A R E C E R
O eminente Senador Pedro Simon, apresentou Projeto de Lei, que recebeu o n. 199, de 2004, pretendendo dar nova redação ao § 2º do art. 110 do Código Penal, para impedir que a prescrição possa ter como termo inicial data anterior à do recebimento da denúncia ou queixa.
Referido projeto encontra-se na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, em apreciação conclusiva.
O referido Projeto tem a seguinte redação:
“Art. 1º O § 2º, do art. 110, do Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940, passa a vigorar com a seguinte redação:
Art. 110. . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . .
§ 2º A prescrição não pode ter por termo inicial data anterior à do recebimento da denúncia ou queixa.
Art. 2º Esta lei entra vigor na data de sua publicação”.
O mesmo dispositivo legal em vigor, por sua vez, tem a seguinte redação:
Art. 110. A prescrição, depois de transitar em julgado a sentença condenatória, regula-se pela pena aplicada e verifica-se nos prazos fixados no artigo anterior, os quais se aumentam de um terço, se o condenado é reincidente.
§ 1º A prescrição, depois da sentença condenatória com transito em julgado para a acusação, ou depois de improvido seu recurso, regula-se pela pena aplicada.
§ 2º A prescrição de que trata o parágrafo anterior pode ter por termo inicial data anterior à do recebimento da denúncia ou queixa.
Art. 2º Esta lei entra vigor na data de sua publicação”.
Na justificativa, o ilustre Senador alega que a prescrição tem a finalidade de proteger os delinqüentes, especialmente aqueles patrocinados por hábeis advogados, que conseguem protrair O ANDAMENTO DOS FEITOS, “recorrendo a todo tipo de expediente, por vezes, até mesmo ilícitos. Trata-se de uma ficção jurídica de nefastas conseqüências, pois resulta, sempre, na possibilidade de livrarem-se soltos réus que, no mérito, não têm defesa sustentável.
“O instituto - prossegue o ilustrado Senador - confessadamente, concorre para aumentar a impunidade, gerando, com isso, um clima de descrença no direito e na justiça. Como bem salientam alguns membros do Ministério Público, o Estado, de um lado, arma um enorme aparato repressor da delinqüência e, de outro, cria norma excepcional para facilitar a ineficácia da lei”.
É o relatório.
II - PARECER
1. Considerações preliminares
Com a ocorrência do fato delituoso nasce para o Estado o ius puniendi. Esse direito, que se denomina pretensão punitiva, não pode eternizar-se como uma espada de Dámocles pairando sobre a cabeça do indivíduo. Por isso, o Estado estabelece critérios limitadores para o exercício do direito de punir, e, levando em consideração a gravidade da conduta delituosa e da sanção correspondente, fixa lapso temporal dentro do qual o Estado estará legitimado a aplicar a sanção penal adequada.
Escoado o prazo que a própria lei estabelece, observadas suas causas modificadoras, prescreve o direito estatal à punição do infrator. Assim, pode-se definir prescrição como “a perda do direito de punir do Estado, pelo decurso de tempo, em razão do seu não exercício, dentro do prazo previamente fixado”. A prescrição constitui causa extintiva da punibilidade (art. 107, IV, 1ª figura, do CP).
A controvérsia em torno da prescrição penal remonta há muitos séculos da historiada civilização. Os costumes e a cultura de cada povo ditavam os parâmetros para que se aceitasse a liberação de um criminoso pelo simples decurso do tempo.
O primeiro texto legal que tratou da prescrição foi a Lex Julia, datada do ano 18 a. C. para determinados crimes. Estendeu-se, posteriormente, à generalidade dos crimes, com exceção do parricídio, parto suposto, entre outros.
O desenvolvimento do instituto da prescrição processou-se lentamente através dos séculos, sendo admitido no direito germânico e no direito de outros povos. Na Idade Média, procurou-se adotar exagerada redução dos prazos prescricionais, motivando enérgica reação, posto que teve como resultado a grande dificuldade em se configurar a ocorrência de prescrição.
Mas essa era somente a prescrição da ação, isto é, da pretensão punitiva!
A prescrição da condenação, no entanto, surgiu na França, através do Código Penal de 1791. Com efeito, a Revolução Francesa parece ter favorecido esse acontecimento. Outros países, em seguida, também adotaram essa outra espécie de prescrição. No Brasil, somente a partir do Código Penal de 1890, passou-se adotar a prescrição da condenação (art. 72), sendo que a prescrição da ação penal já foi adotada a partir do Código Criminal de 1830.
Quanto a prescrição retroativa, por fim, sua discussão começou antes mesmo do CP de 1940 entrar em vigor, que foi diploma legal a adotá-la. Na verdade, o legislador desse Código Penal, adotou o principio de que a sanção concretizada na sentença, sem possibilidade de agravação diante da inexistência de recurso da acusação, era a sanção ab initio justa para o fato praticado pelo agente, revelando-se a pena abstrata muito severa e injusta para regular prazo prescricional.
2. A prescrição abstrata e a prescrição “in concreto”
Com a prática do crime, o direito abstrato de punir do Estado concretiza-se, dando origem a um conflito entre o direito estatal de punir e o direito de liberdade do indivíduo. O Ministério Público deduz em juízo a pretensão punitiva estatal através da denúncia, que, segundo Damásio de Jesus1, é “a exigência de subordinação do direito de liberdade do cidadão ao direito de punir concreto do Estado. Assim, praticado o crime e antes de a sentença penal transitar em julgado, o Estado é titular da pretensão punitiva, exigindo do Poder Judiciário a prestação jurisdicional pedida na acusação”.
Com o trânsito em julgado da decisão condenatória, o ius puniendi concreto transforma-se em ius punitionis, isto é, a pretensão punitiva converte-se em pretensão executória. Da distinção entre ius puniendi e ius punitionis decorre a classificação da prescrição em prescrição da pretensão punitiva, impropriamente denominada prescrição da ação penal, e prescrição da pretensão executória, também chamada de prescrição da pena.
A prescrição da pretensão punitiva só poderá ocorrer antes de a sentença penal transitar em julgado e tem como conseqüência a eliminação de todos os efeitos do crime: é como se este nunca tivesse existido. A partir do trânsito em julgado a prescrição será da pretensão executória.
O lapso prescricional começa a correr a partir da data da consumação do crime ou do dia em que cessou a atividade criminosa (art. 111), apresentando, contudo, causas que o suspendem (art. 116) ou o interrompem (art. 117). A prescrição da pretensão punitiva, por sua vez, subdivide-se em: a) prescrição abstrata, b) prescrição retroativa e c) prescrição intercorrente.
Denomina-se prescrição abstrata porque ainda não existe pena concretizada na sentença para ser adotada como parâmetro aferidor do lapso prescricional. O prazo da prescrição abstrata regula-se pela pena cominada ao delito, isto é, pelo máximo da pena privativa de liberdade abstratamente prevista para o crime, segundo a tabela do art. 109 do CP. Assim, por exemplo, a pretensão estatal prescreve em vinte anos, se o máximo da pena é superior a doze (art. 109, I), ou em dois anos, se o máximo da pena é inferior a um (art. 109, VI).
Esse prazo é básico ou preliminar, porque poderá sofrer a incidência de majorantes ou minorantes de aplicação obrigatória, bem como menoridade ou velhice, que, naturalmente, alterarão seu limite.
3. Prescrição retroativa: evolução e estágio atual
A prescrição retroativa é produto de uma construção pretoriana. O Supremo Tribunal Federal, a partir do ano de 1961, editou a Súmula 146, com o seguinte verbete: “A prescrição da ação penal regula-se pela pena concretizada, quando não há recurso da acusação”. Esse entendimento do Supremo fundamentou-se na redação original do art. 110, parágrafo único, do Código Penal de 1940, que, na ausência de recurso da acusação, impedia que a pena aplicada fosse elevada, devendo servir de base para o cálculo da prescrição. Nesse período, a nossa Corte Suprema passou a admitir que a prescrição incidisse sobre lapso temporal anterior à sentença condenatória e, inclusive, antes mesmo do recebimento da denúncia ou queixa.
A prescrição retroativa leva em consideração a pena aplicada, in concreto, na sentença condenatória, contrariamente à prescrição in abstrato, que tem como referência o máximo de pena cominada ao delito. A prescrição retroativa (igualmente a intercorrente), como subespécie da prescrição da pretensão punitiva, constitui exceção à contagem dos prazos do art. 109. Tem como fundamento o princípio da pena justa, significando que, ausente recurso da acusação ou improvido este, a pena aplicada na sentença era, desde a prática do fato, a necessária e suficiente para aquele caso concreto. Por isso, deve servir de parâmetro para a prescrição, desde a consumação do fato, inclusive. Por isso, a prescrição retroativa pode ser considerada entre a consumação do crime e o recebimento da denúncia, ou entre este e a sentença condenatória (art. 110, § 2º, do CP).
A partir de 1970, houve um movimento para restringir o alcance da prescrição retroativa, a exemplo do que ora se pretende com o projeto do Senador Simon. Naquele movimento de 1970, sugeriu-se, para se reconhecer a prescrição retroativa, a exigência dos seguintes requisitos:
a) sentença condenatória de primeiro grau;
b) existência de recurso da defesa e inexistência de recurso da acusação;
c) possibilidade de contagem do prazo somente entre a data do recebimento da denúncia e a da publicação da sentença condenatória.
Assim, a prescrição retroativa, diante dessa restrição, não poderia ser aplicada entre a data do fato e o recebimento da denúncia.
Essa orientação restritiva vigorou com certa tranqüilidade de meados de 1972 até final de 1974, quando o Supremo Tribunal Federal, com dois novos Ministros (Leitão de Abreu e Cordeiro Guerra), reviveu os debates a respeito do assunto, inclinando-se pelo sentido liberal e refutando aquela sugestão restritiva, revivendo assim a Súmula 146, do inicio da década de 1960.
A prescrição retroativa, no regime da Reforma Penal de 1984 (Lei 7.209) - que alterou toda a Parte Geral do Código Penal - resulta da combinação das disposições dos §§ 1º e 2º do art. 110 do CP e do art. 109. A prescrição, diz o § 1º, depois da sentença condenatória com trânsito em julgado para a acusação, ou depois de improvido seu recurso, regula-se pela pena aplicada. Por seu turno, reza o § 2º que a prescrição, de que trata o parágrafo anterior, pode ter por termo inicial data anterior ao recebimento da denúncia ou da queixa. Essa previsão legal representa precisamente a instituição da prescrição retroativa, exatamente nos moldes da Súmula 146.
O termo inicial da prescrição, de regra, é o da consumação do crime, seja instantâneo ou seja permanente. Embora o art. 4º determine que o tempo do crime é o momento da ação, em termos de prescrição, o Código adota, como exceção, a teoria do resultado. Mas, excepcionalmente, em se tratando de tentativa e de crime permanente, adota a regra geral, que é a teoria da atividade.
4. Fundamentos político da prescrição
Analisamos, a seguir, sucintamente, como convém, neste momento, os principais fundamentos:
1) o decurso do tempo leva ao esquecimento do fato: como afirma Giulio Battaglini, a prescrição “cessa a exigência de uma reação contra o delito, presumindo a lei que, se o tempo não cancela a memória dos acontecimentos humanos, pelo menos a atenua ou a enfraquece”. Se o alarma social é que determina também a intervenção do Estado na repressão dos crimes, quando decorreu determinado período de tempo da prática do próprio crime sem que tenha sido reprimido, o alarma social se desaparece pouco a pouco e acaba apagando-se, de tal modo que provoca a ausência do interesse que fez valer a pretensão punitiva.
2) O decurso do tempo leva à recuperação do criminoso: com o decurso do tempo e a inércia do Estado, a pena perde seu fundamento, esgotando-se os motivos do Estado para desencadear a punição.
Em se tratando de condenação, força é convir que o longo lapso de tempo, decorrido, sem que o réu haja praticado outro delito, está a indicar que, por si mesmo, ele foi capaz de alcançar o fim que a pena tem em vista, que é o de sua readaptação ou reajustamento social. Caso o condenado volte a delinqüir, o decurso do tempo não terá sido capaz de regenerá-lo. Nossa legislação penal estava ciente disso, ao afirmar que o prazo da prescrição da pretensão executória interrompe-se pela reincidência (art. 117, VI, do Código Penal).
Os positivistas não admitem que a periculosidade social possa desaparecer com o decurso do tempo, pois que, como afirmava Cesare Lombroso, o criminoso é um ser atávico, ou seja, é ele uma regressão ao homem primitivo ou selvagem; ele já nasce delinqüente e, como tal, continuará agindo até morrer. No entanto, essa concepção positivista não se justifica, uma vez que a prescrição resolve os anseios individuais e coletivos de repressão, seja pelo aspecto preventivo, seja pelo retributivo.
3) O Estado deve arcar com sua inércia: é inaceitável a situação de alguém que, tendo cometido um delito, fique sujeito, ad infinitum, ao império da vontade estatal punitiva. Se existem prazos processuais a serem cumpridos, a sua não-observância é um ônus que não deve pesar somente contra o réu. A prestação jurisdicional tardia, salvo em crimes de maior gravidade, não atinge o fim da jurisdição: a justiça.
Não há interesse social, nem legitimidade política, em deixar o criminoso indefinidamente sujeito a um processo ou a uma pena.
4) O decurso do tempo enfraquece o suporte probatório: este fundamento pode-se dizer, é de direito processual. O longo hiato temporal faz surgir uma dificuldade em coligir provas que possibilitem uma justa apreciação do delito. A apuração do fato delituoso torna-se mais incerta, e a defesa do acusado mais precária e difícil.
Outras teorias acerca do fundamento da prescrição foram desenvolvidas, como a da expiação temporal e a psicológica. Para a primeira, com o decurso do tempo, o culpado expiou suficientemente a culpa com as angústias que sofreu e com os remorsos que o assaltaram. Já, para a segunda, o tempo muda a constituição psíquica do culpado, pois eliminou-se o nexo psicológico entre o fato e o agente; na verdade, com longo decurso de tempo, será “outro indivíduo” quem irá sofrer a pena, e não aquele que, em outras circunstâncias, praticou o crime no passado. Podemos notar, claramente, que, para ambas as teorias, houve a recuperação do criminoso em virtude do fluir temporal, motivo pelo qual enquadram-se, em nosso entendimento, no segundo fundamento apontado - o decurso do tempo leva à recuperação do criminoso.
Para concluir, a prosperar a pretensão do digno e culto Senador Pedro Simon, estará oficializado o “engavetamento de inquéritos policiais, CPIs e todo e qualquer procedimento criminal, para serem ajuizados quando melhor aprouver a determinadas autoridades. Assim, pairaria sobre eventual investigado, que ainda é presumidamente inocente, a Espada Dámocles a que nos referimos ao longo deste trabalho, com a ameaça ad perpetuam, do poder repressivo estatal, contrariando todos aqueles fundamentos político-filosóficos a que nos referimos.
Por todo o exposto, venia concessa, opinamos pela rejeição do projeto do eminente Senador Pedro Simon,
Brasília, 05 de dezembro de 2004.
CEZAR ROBERTO BITENCOURT
Conselheiro Federal pelo Rio Grande do Sul