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Homenagem a Lyda Monteiro

terça-feira, 27 de agosto de 2019 às 20h15

Uma civilização não se cria, renova-se; mas às vezes, parece que recua. Dia trágico, para a OAB, o 27 de agosto de 1980, data da morte da sua Diretora-Secretária, em consequência da explosão de uma bomba, pelos terroristas da Direita, inconformados com as atitudes definidas de independência que a Ordem vinha mantendo frente à Ditadura Militar. 

Estava o Conselho Federal, na tarde daquele dia, funcionando normalmente, quando, inesperada e repentinamente, ouviu-se uma detonação, na sala em que trabalhava dona Lyda Monteiro da Silva. A sala ficou destruída, vendo-se, apenas, o seu corpo agonizante, que foi levado de imediato para o Hospital Souza Aguiar, onde veio a falecer. O então presidente, Eduardo Seabra Fagundes, sucessor de Raymundo Faoro, reuniu o Conselho Federal em sessão extraordinária. Manifestações várias verberaram e reverberaram, energicamente, o brutal atentado que vitimou uma exemplar servidora que, desde os 16 anos, trabalhava na instituição, com uma folha de serviços “que se desenvolveu quase coincidentemente com a vida da Ordem”, conforme ressaltou, em comovente pronunciamento, do conselheiro J. B. Viana de Morais. O acontecimento representou um golpe profundo no coração da entidade, que se viu envolvida em terrível combustão. Estávamos, à época, na presidência da OAB Bahia. Convocado por Eduardo Seabra Fagundes, fomos, no dia seguinte, à sede do Conselho Federal, que funcionava no Rio de Janeiro, em edifício sito na Rua Marechal Bittencourt, em salas do 2º e 4º andares. Encontramos, ainda, pedaços do couro cabeludo de D. Lyda incrustrados no teto. É difícil descrever a dor, a mágoa, os sentimentos de revolta, generalizada. Nada aliviava o pesadume, a aflição, daqueles momentos. Toda a OAB comoveu-se pela sua secretária, pessoa de educação refinada e de linguagem comedida. Tínhamos por ela particular afeto, não só pela polidez do trato, como pela forma diligente com que procurava nos inteirar dos assuntos institucionais de importância, naquela conjuntura do regime militar e também das reuniões dos Presidentes das Seccionais. Seu conceito de pessoa bondosa, competente e dedicada, era de clarividência irrecusável. Não surgiu “post mortem”. Personificava ela, administrativamente, a alma da entidade, cuja camisa - como é de uso dizer-se no mundo esportivo -, vestia, incansável e verdadeiramente. Aliás, a OAB teve e tem o privilégio de possuir um corpo de funcionários com características semelhantes, desde seu órgão maior, hierarquicamente, até as subseções. Somos testemunhas disso.

Vamos beliscar um pouco a memória para reconstituir, com brevidade, o fatídico episódio, como dele nos inteiramos, no “after day”. No início da tarde do dia 27, retro-citado, chegou à sede da OAB um envelope, de certa espessura, compacto, na forma de correspondência endereçada ao Presidente do Conselho Federal, que era assim o alvo direto. Uma jovem funcionária, recém contratada, adiantou-se para receber. Ao tentar abri-la, foi advertida por dona Lyda nestes termos: “minha filha, há mais de 30 anos quem abre a correspondência do Presidente sou eu; você chega agora e já quer abrir?” A novel servidora, pediu-lhe desculpas e, acanhadamente, saiu da sala do 2º andar para a outra do 4º andar, do mesmo edifício. Ao atingir o 3º andar, verificou-se a detonação. A força explosiva do artefato foi de tal porte que chegou a danificar a vidraças do andar superior. 

A OAB cobrou do governo imediatas providências para apuração dos fatos, as quais retardaram e só após dois dias apareceram agentes da Polícia Federal para iniciar a investigação. Resolveu, então, a Ordem contratar um perito-criminalístico independente, Antônio Carlos Vilanova, para acompanhar os trabalhos da Polícia Federal, e conduzir suas próprias investigações. Passa-se o tempo, e, apesar do empenho, a OAB nunca tivera acesso aos autos do IP, sendo marginalizada da investigação da Polícia Federal, malgrado a Lei nº 4.215/1962, reproduzida pela atual Lei nº 8.906/1994 prevê, como espécie de assistência “sui generis” no processo penal, a presença da OAB. Releva não esquecer a resposta dada pelo perito particular ao concluir suas investigações. Disse o famoso Vilanova (de fama internacional) que só uma pessoa neste país poderia ter aquele tipo de explosivo. Indagado quem era, respondeu que não podia revelar o nome, o que veio causar surpresa maior neste imbróglio. O procedimento investigatório, mais tarde, foi remetido à Auditoria Militar, apontando o Sr. Ronald Walters ideologicamente da direita, “identificado como ex-agente do Serviço Nacional de Informações, como suposto responsável pelo homicídio” (cfr. Alberto Venâncio Filho, “Notícia Histórica da OAB 1930 – 1980, pg. 226 – 227, entre outros). “Em 1994, isto é, 14 anos depois, o mesmo Ronald Walters, declarou em um programa de TV, que, embora inocente, conhecera o responsável pelo atentado, insinuando também que o general Golbery do Couto e Silva, chefe do SNI à época, tinha participado do caso. Diante dessa revelação, a OAB requereu ao MP reabertura da investigação, que fora arquivada “por falta de provas” contra o acusado. Sem êxito, porém. É importante destacar que a explosão do petardo terrorista, ocorrera na hora exata em que o Conselho Seccional de S. Paulo e o presidente nacional, Eduardo Seabra Fagundes, solicitavam às autoridades identificação dos agentes de segurança que haviam participado de outro atentado terrorista naquele Estado, contra o advogado e professor Dalmo de Abreu Dallari.

O Conselho Federal da Ordem instituiu um “Dia Nacional Contra o Terror” e o Prêmio “Lyda Monteiro da Silva” a ser atribuído a trabalhos jurídicos inéditos sobre o terrorismo. 

Também inúmeros atos religiosos foram mandados celebrar pela alma de dona Lyda, por iniciativa dos diversos Conselhos Seccionais. Em São Paulo, a missa foi oficiada por D. Paulo Evaristo Arns. Aqui na Bahia, por solicitação nossa, foi celebrada por D. Avelar Brandão Vilela Arcebispo de Salvador, primaz do Brasil.

Por coincidência, estava em andamento a interiorização da OAB Bahia, que tivemos a iniciativa de promover, criando várias Subseções e realizando encontros de advogados, do interior do Estado. Quando assumimos a Presidência, encontramos instaladas apenas 3 subseções (Ilhéus, Itabuna e Feira de Santana), que viviam isoladas, “como veleiros nos portos silenciosos” para usar imagem de Vinícius de Moraes. Até então, nunca um Presidente da Seccional baiana estivera em qualquer delas para a realização de eventos. Resolvemos criar outras tantas para cobrir os quadrantes do nosso Estado com a presença da nossa instituição. Tomamos a peito essa tarefa. Lembramos bem que, ao instalar a subseção de Jacobina-BA, o advogado João Maximiniano, em vibrante discurso, disse da sua importância e ressaltou que, até então, a OAB só ali comparecia como agente arrecadador. Fizemos o Primeiro Encontro de Subseções, aqui na Capital com a presença de todas as subseções, cuja pauta continha matéria ou temas de interesse geral dos advogados que labutam no interior, inclusive, o primeiro deles: a situação de descalabro em que estava a situação da Justiça em todo interior do Estado. A imprensa em geral deu ampla cobertura e incentivo; daí se sucederam outros tantos “Encontros” sempre com a presença da direção da OAB. 

Na celebração das missas, pela alma de dona Lyda, sentimos, aqui na Bahia, pela primeira vez, a força da união dos advogados, da Capital e do interior; o valor, o fortalecimento, o respeito e o prestígio, da nossa entidade, com a solidariedade geral da população. A descentralização, entre outros benefícios, levou ao próprio local de trabalho dos advogados a presença do seu órgão de classe. Todos, uníssonamente, reprovaram o atentado dirigido a OAB, com as nefastas consequências.

Granjeando amizade e simpatia dos seus semelhantes no curso da sua existência, morreu dona Lyda, no campo de batalha, como um soldado que nunca vira o seu inimigo. 

A figura da morte, adverte Cervantes, “em qualquer traje que venha, é espantosa”, mormente, acrescemos nós, quando agravada pela maneira de morrer. Porém, como aprouve dizê-lo a Propércio, em suas “Elegias”, II, a morte não termina tudo. A vida perdura a imagem, a memória dos que se foram. Deus é o arbitro do nosso destino. Que permaneça em paz, dona Lyda, na quietude suprema, na serena beatitude onde repousam as consciências boas.

* Texto escrito pelo Dr. Thomas Bacellar, ex-presidente da OAB-BA e professor de Direito Penal da Faculdade Católica de Salvador

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