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Por um Código de Processo Constitucional

17 de junho de 2013 - PAULO ROBERTO DE GOUVEA MEDINA

1.         Processo e Constituição

 

 

                                   A vinculação do processo à Constituição cresce à medida que as normas processuais passam a ser concebidas como garantias dos jurisdicionados e se propõem servir de instrumento à realização de uma tutela jurisdicional efetiva, mediante amplo acesso à Justiça.

                                   Em livro pioneiro no trato do assunto, Ada Pellegrini Grinover observava “que a própria constituição se incumbe de configurar o direito processual não mais como mero conjunto de regras acessórias de aplicação do direito material, mas sim, cientificamente, como instrumento público de realização da justiça.”[1].  Em síntese precisa, acrescentava a autora: o “direito processual é expressão com conteúdo próprio, em que se traduz a garantia da tutela jurisdicional do Estado, através de procedimentos demarcados formalmente em lei.”[2].

                                   Transparece claramente no trecho citado a idéia do due process of law, que vem da Emenda nº 5, de 1791, à Constituição dos Estados Unidos da América.

                                   No Brasil, já no século XIX, dois dos nossos maiores nomes nos campos do Direito Processual e do Direito Constitucional souberam compreender esse sentido do processo que, aqui, se destaca.  João Mendes de Almeida Júnior – autor dos clássicos O Processo Criminal Brasileiro e Direito Judiciário Brasileiro – escreveu: “As leis do processo são o complemento necessário das leis constitucionais; as formalidades do processo são as atualidades das garantias constitucionais.”[3]  João Barbalho – o respeitado intérprete da Constituição de 1891, autor de Constituição Federal Brasileira – Comentários – enfatizou: “As leis do processo são complementos das garantias constitucionais, ou antes, parte integrante delas.”[4].

                                   Ao lado desse sentido de garantia instrumental dos direitos subjetivos, o processo é, hoje, visto como forma de assegurar a efetiva tutela jurisdicional prometida pela Constituição aos titulares daqueles direitos.  Segundo assinala Cássio Scarpinella Bueno, “Tutela jurisdicional efetiva impõe a realização concreta dos direitos declarados existentes pelo Estado-juiz” – e a exigência de que assim aconteça, proporcionando-se “a quem tenha um direito – como queria Chiovenda --, tudo aquilo e exatamente aquilo que ele tenha direito de conseguir”, deriva do “modelo constitucional do processo civil”[5]

                                   O princípio da eficiência que, consoante o art. 37, caput, da Constituição, deve nortear todos os órgãos da administração pública, serve de bússola também à tutela jurisdicional, de modo que esta só será realmente eficiente quando se tornar praticamente efetiva.

                                   Juan Montero Aroca, ao referir-se ao fenômeno da constitucionalização do direito de ação, advertiu: “Es preciso que ello tenga consecuencias em la actuación de los órganos jurisdicionales, em las leyes procesales y, por último, em la práctica.  Lo fundamental com relación ao derecho de acción es su efectividad.  El Estado, al constitucionalizar el derecho, queda comprometido a poner los médios oportunos para hacerlo efectivo.”[6]

                                   Para que uma coisa e outra aconteçam, isto é, para que o processo represente garantia assegurada às partes de que os seus direitos serão tutelados e para que essa tutela se mostre, de fato, efetiva, é mister que haja amplo acesso à Justiça. 

                                   O acesso à Justiça implica, de um lado, a existência de meios hábeis para que as pretensões sejam submetidas ao crivo do Judiciário e, de outro, a possibilidade de que esses meios sejam utilizados, em igualdade de condições, por todos os que invocam a titularidade de uma pretensão.  Sob o primeiro aspecto, tem-se a instrumentalização técnica do acesso à Justiça, por meio de ações e procedimentos adequados.  Sob a perspectiva do segundo, cogita-se da face social do problema, uma vez que o acesso à Justiça, no Estado Democrático de Direito, deve ser estendido a todos os cidadãos.  Como escrevemos alhures, “ter acesso à Justiça é ver reconhecida a cidadania na condição de jurisdicionado”[7]

                                   Esses três aspectos – o do processo como garantia, o do processo como instrumento de uma tutela jurisdicional efetiva e o do processo como expressão do direito de acesso à Justiça – representam, hoje, as três dimensões que o direito processual revela na perspectiva da Constituição.

 

 

2.         Jurisdição constitucional e normas constitucionais de processo

 

 

                                   A jurisdição constitucional tem por objeto a tutela de direitos fundamentais, por meio de ações instituídas para esse fim específico na própria Constituição, bem assim promover o controle da constitucionalidade das leis e dos atos normativos.  Na primeira vertente, tem-se a chamada jurisdição constitucional da liberdade consoante a denominação que lhe atribuiu Mauro Cappelletti.  No segundo plano, surge o controle jurisdicional da constitucionalidade.

                                   As modernas Constituições contemplam variado elenco de ações destinadas à tutela de direitos fundamentais.  São ações constitucionais, na Carta Política do Brasil, a ação popular, a ação civil pública (constitucionalizada a partir de sua inserção entre as atribuições institucionais de um dos seus legitimados, o Ministério Público), o mandado de segurança, o mandado de injunção, o habeas data, o habeas corpus, a ação de impugnação de mandato eletivo.

                                   Na Constituição da Espanha e nas Constituições dos países hispano-americanos, em geral, aparece, como instrumento análogo ao nosso mandado de segurança, a ação de amparo.  O habeas data figura nas Constituições da Argentina, do Paraguai, do Peru, do Equador e da Venezuela, além de apresentar-se, na Constituição da Bolívia, com o nome de ação de proteção de privacidade[8].

                                   A Constituição da Colômbia institui a ação de tutela, que tem por objeto a proteção imediata de direitos constitucionais fundamentais, em face de lesão ou ameaça decorrente de ação ou omissão de qualquer autoridade pública (art. 86).  E prevê também a ação de cumprimento, cabível, igualmente, em face de ato ou omissão de autoridade pública, para fazer efetivo o cumprimento de uma lei ou um ato administrativo (art. 87).

                                    A Constituição do Equador concebe a ação de acesso à informação pública, cabível em face de obstáculo para obtê-la ou quando a que tenha sido fornecida não seja completa ou fidedigna (art. 91).

                                   Ampliam-se, assim, nas Constituições mais recentes da América do Sul, as ações destinadas à tutela de direitos fundamentais.

                                   Por sua vez, o controle jurisdicional da constitucionalidade diversifica-se, significativamente.  Ao lado do controle por via de exceção, peculiar ao sistema difuso, quase todos os países da América do Sul praticam o controle por via de ação, próprio do sistema concentrado.  Em alguns deles, adota-se o modelo europeu, existindo Cortes Constitucionais no Chile, na Colômbia, na Bolívia e no Equador[9].

                                   É digno de nota também o fato de expandirem-se, nas modernas Constituições, as normas de natureza processual.  Além dos princípios constitucionais do processo, perfilhados, em regra, entre as disposições referentes aos direitos e garantias fundamentais, encontram-se, em algumas Constituições da América do Sul normas que preordenam o sistema processual do país. 

                                   Merecem referidas, sob esse aspecto, as Constituições do Equador e da Venezuela.  A Constituição do Equador indica, no seu art. 168, os princípios da administração da justiça,dispondo, no item 6, que “A formação dos processos em todas as matérias, instâncias, etapas e diligências se levará a cabo mediante o sistema oral, de acordo com os princípios de concentração, contraditório e dispositivo.”.  A Constituição Bolivariana da Venezuela preceitua, no seu art. 257: “O processo constitui um instrumento fundamental para a realização da justiça. As leis processuais estabelecerão a simplificação, uniformidade e eficácia dos trâmites e adotarão um procedimento breve, oral e público.  Não se sacrificará a justiça pela omissão de formalidades essenciais.”.

                                   Como se vê, nas duas Constituições citadas têm-se normas tipicamente processuais, como se essas leis fundamentais se preocupassem em traçar, desde logo, as linhas mestras dos códigos de processo civil dos respectivos países.

                                   Não poderia ser mais evidente a vinculação que, aí, se estabelece entre o processo e a Constituição.

 

 

3.         O Direito Processual Constitucional

 

 

                                   Já se vê quão amplo e propício é o panorama que se descortina ao surgimento, no quadro geral das disciplinas jurídicas, do Direito Processual Constitucional.

                                   Há uma correlação lógica entre Direito Processual Constitucional e Jurisdição Constitucional[10].  Como destaca Rubén Hernández Valle, “Em el proceso constitucional se tutelan dos bienes jurídicos diferentes: los derechos fundamentales de los ciudadanos y el princípio de supremacia constitucional.”[11].

                                   Concebido, originariamente, como simples método de estudo dos temas constitucionais do processo, esse novo ramo da ciência jurídica , ganhando contornos definitivos, ostenta, hoje, autonomia entre os vários departamentos do Direito.  É, pode-se dizer, uma disciplina autônoma em condições de ser inserida nos currículos dos cursos de graduação.  E isso vem ocorrendo, notadamente na América Latina.

                                   Dois eminentes professores peruanos – Domingo García Belaunde e Eloy Espinosa-Saldanha Barrera --, realizaram, no período de dezembro de 2004 a dezembro de 2005, importante enquête entre juristas da Alemanha, Espanha, Itália e de Portugal e também de vários países da América Latina, acerca da disciplina, sua denominação e respectiva bibliografia, publicando o resultado do trabalho em substancioso volume, com o título Encuesta sobre Derecho Procesal Constitucional, dado a lume no ano de 2006[12].  Fica evidenciada, nas respostas oferecidas ao questionário que orientou essa enquête, a expansão que o Direito Processual Constitucional vem alcançando, sobretudo na América Latina[13].

                                   Particularmente na Argentina, na Bolívia, no Brasil, na Colômbia, na Costa Rica, no Chile, no México e no Peru os estudos de Direito Processual Constitucional têm-se desenvolvido com grande proveito.  A bibliografia especializada experimenta significativo incremento.  Os currículos de muitos cursos já contemplam a disciplina em sua grade.

                                   Ao lado da Teoria Geral do Processo, o Direito Processual Constitucional representa um novo campo que se abre à processualística, enriquecendo-a sobremaneira.

                                   No México, criou-se, por iniciativa de alguns dos corifeus dessa nova disciplina, o Instituto Mexicano de Derecho Procesal Constitucional.  Na Itália, embora o desenvolvimento da matéria não seja o mesmo que se verifica na América Latina, deve ser destacada a existência do chamado Grupo di Pisa, que reúne constitucionalistas interessados nos temas que compõem o novo Direito Processual Constitucional.

                                   Fato auspicioso para a nova disciplina jurídica foi a edição promovida, em 2008, no México, por iniciativa do Instituto Mexicano de Derecho Procesal Constitucional, em convênio com a Universidad Autônoma de México, da obra, em doze tomos, La Ciência del Derecho Procesal Constitucional, em homenagem a um dos maiores nomes desse campo de estudo, o Prof. Héctor Fix-Zamudio, ao ensejo das Bodas de Ouro de sua atuação científica, celebradas em 2006[14]

4.         Codificação das normas pertinentes à jurisdição constitucional

 

 

                                   A importância adquirida pelo Direito Processual Constitucional nos quadrantes da ciência jurídica já se reflete em, pelo menos, dois códigos nacionais pertinentes à matéria.  O primeiro não traz, propriamente, essa denominação, preferindo adotar a nomenclatura comum às leis gerais sobre determinado assunto.  Trata-se da Lei da Jurisdição Constitucional, vigente na Costa Rica – Lei nº 7.135, de 11 de outubro de 1989.  A abrangência desse diploma legislativo é de tal ordem que o torna, na verdade, um estatuto fundamental do processo constitucional, com todos os visos de um código que reúna as normas relativas a esse ramo do direito.

                                   Dividida em seis títulos, a Lei costarriquenha trata, a partir do Título II, do hábeas corpus, do amparo, das questões de constitucionalidade (aí compreendidas a ação de inconstitucionalidade e as consultas de constitucionalidade), dos conflitos constitucionais (entre os Poderes do Estado e entre estes e entidades descentralizadas, municipalidades e outras pessoas de Direito Público), dedicando o primeiro título às disposições preliminares e o último às disposições finais.

                                   O art. 1º da Lei da Jurisdição Constitucional indica o seu fim precípuo: “regular a jurisdição constitucional, cujo objeto é garantir a supremacia das normas e princípios constitucionais e do Direito Internacional ou Comunitário vigente na República, sua uniforme interpretação e aplicação, assim como os direitos e liberdades fundamentais consagrados na Constituição ou nos instrumentos internacionais de direitos humanos vigentes na Costa Rica.”[15].

                                   Percebe-se, pelo exame do Título I Lei da Jurisdição Constitucional da Costa Rica, que não faltam razões ao Prof. Rubén Hernández Valle quando afirma, com uma ponta de orgulho, que “Em su Capítulo de Disposiciones Generales consagra” a citada Lei “algunos princípios novedosos que colocan a nuestra legislación a la vanguardía em la matéria”.[16].

                                   Mais recentemente, a 28 de maio de 2004, o Peru promulgou o seu Código Procesal Constitucional (Lei nº 28.237/2004), que entrou em vigor a 1º de dezembro de 2004.

                                   O Código peruano trata das ações constitucionais (habeas corpus, amparo, habeas data, ação de cumprimento, ação popular e ação de inconstitucionalidade), das atribuições do Tribunal Constitucional e da Justiça Internacional.  Esta é exercida pelo Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas e pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos, cuja jurisdição é, assim, reconhecida, assegurando-se a todo cidadão peruano acesso às respectivas instâncias.

                                   Contém, ainda, o Código Procesal Constitucional da República do Peru norma de singular importância, no plano da hermenêutica constitucional, que bem revela o grau de adesão da ordem jurídica peruana ao primado do Direito Internacional Público.  Trata-se do art. V, assim concebido:

 

Art. V – Interpretação dos Direitos Constitucionais

O conteúdo e o alcance dos direitos constitucionais protegidos pelos processos regulados no presente Código devem interpretar-se de conformidade com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, os tratados sobre direitos humanos, assim como as decisões adotadas pelos tribunais internacionais sobre direitos humanos constituídos segundo tratados de que o Peru é parte.

 

                                   Observa com propriedade o Prof. Francisco Eguiguren Praeli que a promulgação do Código Procesal Constitucional foi um “hecho de particular trascendencia nacional y continental.  De un lado, porque se trata del primer código de um país latinoamericano que aborda, de manera orgânica, integral y sistemática, el conjunto de los procesos constitucionales y los princípios procesales que los sustentan.  De outro, porque la norma recoge importantes avances e innovaciones, provenientes de los aportes de la doctrina y jurisprudência de la matéria, a la par de corregir vacíos y deficiencias observadas em el funcionamiento judicial y la legislación precedente.”[17].

 

 

5.         Proposta de um Código de Processo Constitucional para o Brasil

 

 

                                   Inspirados pelo exemplo do Código peruano, os Profs. Paulo Bonavides e Paulo Lopo Saraiva trouxeram o tema a debate, em artigo publicado no jornal “Folha de S. Paulo”, edição de 10 de janeiro de 2010, sob o título “Proposta: Código de Processo Constitucional”.

                                   Partiram os ilustres constitucionalistas da premissa – que constitui a frase-síntese do texto – de que “O processo constitucional tem crescente importância, mas as leis que dispõem sobre esse processo se acham esparsas.”  E concluíram que “o Brasil precisa de um Código de Processo Constitucional” – o qual “deveras contribuirá para tornar a Constituição cada vez mais efetiva na confluência: norma, jurisdição e processo.”.

                                   A idéia lançada no referido artigo logo recebeu apoio de dois outros eminentes juristas, o Prof. André Ramos Tavares, nome destacado da nova geração de constitucionalistas brasileiros e o Prof. Domingo García Belaunde, corifeu dos estudos de Direito Processual Constitucional no Peru e que vem dando notável contributo à difusão dessa disciplina na América Latina, como já foi observado, acima.  Na mesma página do prestigioso jornal (“Tendências/Debates”), os dois professores fizeram publicar, a 21 de fevereiro de 2010, texto com a instigante epígrafe – “Mais um código ?”.

                                   Reportando-se à Lei da Jurisdição Constitucional, da Costa Rica e ao Código de Processo Constitucional do Peru, os articulistas mencionaram também o Código de Processo Constitucional da província Argentina de Tucumán, promulgado em 1999, como paradigmas que devem ser considerados no exame do tema.  Enfatizaram, em determinado passo, “que a larga experiência existente em nossa América Latina e em especial no Brasil, com sua grande tradição jurídica, merece que seja sistematizada toda a legislação dispersa que aqui existe, contribuindo assim para melhorar o funcionamento dos processos constitucionais, que têm uma antiguidade respeitável, a sustentar essa proposta de um novo código, lançada neste espaço (“Proposta: Código de Processo Constitucional”, “Tendências/Debates”, 10/10).

                                   A adesão assim manifestada à proposição originária, tende, certamente, a despertar a atenção dos especialistas para o tema, ampliando o debate em torno da idéia de dotar o país de um Código de Processo Constitucional.

                                   Vindo a frutificar a semente lançada, a etapa seguinte seria a de reunir, num corpo de normas, as disposições que hoje se acham dispersas acerca das várias ações constitucionais, fazendo-as preceder, naturalmente, de uma parte introdutória, em que se agrupassem os princípios constitucionais do processo.  O trabalho a ser desenvolvido seria, basicamente, de simples sistematização.  Das ações constitucionais, as únicas que ainda carecem de disciplina normativa são o mandado de injunção e a impugnação de mandato eletivo.  Pouco haveria o que inovar em relação às demais, embora a oportunidade de elaboração de um código que as sistematize dê ensejo ao aprimoramento de uma ou outra disposição em vigor.  Outros temas que mereceriam disciplina, nesse Código, seriam o do exercício do direito de petição e o da representação por abuso de autoridade.  Seria o caso também de regular-se nesse novo diploma legislativo uma ação destinada à tutela dos direitos fundamentais em face de particulares, sabido que, muitas vezes, as ameaças ou violações de direitos dessa natureza emanam de atos de pessoas físicas ou jurídicas de direito privado.

                                   A questão está em saber se se justifica, realmente, a elaboração de um código sobre a matéria do processo constitucional. 

                                   Os argumentos contrários à idéia seriam os que, em geral, se opõem a qualquer codificação.

                                   Quando da elaboração do vigente Código Civil, o Prof. Caio Mário da Silva Pereira manifestou o pensamento de que o “fenômeno da codificação”, a que aludira Clóvis Beviláqua, correspondia a uma idéia que dominara o século XIX e penetrara no século seguinte, mas estava passando...  Chegou, por isso, o eminente civilista mineiro a pregar a “descodificação do Direito Civil”, argumentando “que a celeridade da vida não pode ser detida pelas muralhas de um direito codificado.  Acontecimentos, ora na simplicidade da existência cotidiana, ora marcados pelos de maior gravidade, exigem novos comportamentos legislativos.  Em conseqüência, um edifício demoradamente construído, como é um Código, vê-se atingido por exigências freqüentes, necessitando de suprimentos legislativos.”[18].

                                   O receio manifestado nessas palavras não ecoou, porém, nem parece encontrar ressonância no contexto da legislação que ora regula as ações constitucionais, entre nós.  Esse parece ser, com efeito, um quadro marcado pela estabilidade, ao longo do tempo.  As leis que tratam da matéria, no nosso ordenamento jurídico, são, quase todas, já antigas ou tiveram duração prolongada.  Nesse último caso, se enquadra a penúltima lei de regência do mandado de segurança – Lei nº 1.533, de 31 de dezembro de 1951 – só recentemente substituída pela Lei nº 12.016, de 7 de agosto de 2009.  A lei da ação popular é de 1965 (Lei nº 4.717, de 29/06/1965).  A da ação civil pública, de 1985 (Lei nº 7.347, de 24/07/1985) – e só agora se cogita de sua substituição, tendo sido, aliás, arquivado o projeto respectivo na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados e pendendo recurso, para o Plenário, dessa decisão, o que mostra a dificuldade encontrada para a revogação pretendida pelo Executivo.  O hábeas corpus é, ainda, regulado pelo Código de Processo Penal de 1941 e a alteração mais significativa que recebeu, relativa à concessão de liminar, resultou de construção pretoriana.  As demais leis (sobre hábeas data e controle concentrado de constitucionalidade) datam de mais de dez anos.  

                                   Não faltariam os que vissem na iniciativa proposta uma bizantinice de especialistas na matéria, como se os interesses dos jurisdicionados não estivessem a reclamar um código dessa natureza.  Aos que assim pensam, seria o caso de indagar: se podemos ter um Código de Trânsito (versando matéria essencialmente regulamentar) por que estranhar que queiramos possuir um Código de Processo Constitucional, destinado a reger os instrumentos por meio dos quais as garantias fundamentais dos cidadãos são exercidas ?

                                   Os pontos favoráveis ao advento desse novo código parecem justificá-lo, plenamente.

                                   Em primeiro lugar, o código que se propõe teria o mérito de sistematizar normas que andam dispersas e que, certamente, muito ganhariam com uma disciplina uniforme que lhes conferisse harmonia e evitasse a subsistência de disposições redundantes.  Veja-se, por exemplo, o caso da ação popular e da ação civil pública.  A lei de regência dessa última trata de alguns aspectos comuns à ação popular, que comportariam igual disciplina, no mesmo texto legal.  O mandado de injunção tem obedecido, até aqui, ao procedimento do mandado de segurança – e isso poderia ser normatizado, no código de que se cogita.  As liminares, em geral, sujeitam-se aos mesmos pressupostos – o fumus boni in iuris e o periculum in mora – e comportam, nas mesmas hipóteses, medida de suspensão do ato que as defere, a chamada contracautela.  Caberia, portanto, dispensar um tratamento comum ao tema.

                                   A codificação do processo constitucional teria reflexos significativos também no campo da hermenêutica jurídica.  O método sistemático, hoje considerado o mais abrangente dos métodos interpretativos, tendo por fim estabelecer a necessária correlação entre o dispositivo interpretado e os demais preceitos atinentes à matéria, conduz, sem dúvida, a resultados mais seguros quando se processa num contexto unitário, em que as normas confrontadas sejam da mesma natureza e se subordinem aos mesmos princípios gerais. As ideias de conjunto, coerência, unidade, harmonia, interdependência metodológica, são as matrizes do método sistemático.  E essas ideias permeiam todo o texto de um código bem elaborado.  No que diz respeito às disposições legislativas sobre o processo constitucional, seria inegável o benefício que adviria para a interpretação de cada um dos seus instrumentos com a codificação que os sistematizasse.

                                   Por fim, deve-se considerar o incremento que um novo código sempre traz aos estudos sobre o ramo do Direito a que corresponda.  O código que, aqui, se preconiza estaria fadado a contribuir, expressivamente, para o desenvolvimento do Direito Processual Constitucional, entre nós.  Consolidar-se-ia, assim, o processo constitucional, do ponto de vista científico.  Se, atualmente, em toda a América Latina esse novo departamento do direito público cresce de importância, ganhando espaço nos currículos dos cursos de graduação, com o advento de um código relativo à matéria maior seria o seu significado.

                                   Não é, pois, por puro mimetismo ou pela aspiração natural de situar-nos no mesmo patamar em que hoje se colocam países como a Costa Rica e o Peru, que apoiamos a proposta de um Código de Processo Constitucional.  Estamos persuadidos, realmente, de que a instituição desse novo código seria benéfica, sob vários aspectos, ao ordenamento jurídico brasileiro.



[1] Os Princípios Constitucionais e o Código de Processo Civil. São Paulo: José Bushatsky Editor, 1975, pp. 11/12, nº 5.

[2] Ob. cit., p. 12, ibidem.

[3]  O Processo Criminal Brasileiro. 3ª. Edição. Rio de Janeiro: Batista de Souza, 1920, vol. I, p. 9, nº 4.

[4]  Constituição Federal Brasileira – Comentários. 2ª. Edição. Rio de Janeiro: F. Briguiet e Cia., 1924, p. 435.

[5] BUENO, Cássio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil, vol. 1 – Teoria Geral do Direito Processual Civil. 4ª. Edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2010, p. 308, nº 6.

[6] Introduccion al Derecho Procesal – Jurisdicción, acción y proceso. Madri: Editorial Tecnos, 1976, p. 165.

[7]  MEDINA, Paulo Roberto de Gouvêa. Direito Processual Constitucional. 4ª. Edição. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 11, nº 5.

[8]  V., a esse respeito, nosso Direito Processual Constitucional, cit, pp. 18/30, nº 2.

[9]  V., a esse respeito, nosso Direito Processual Constitucional, ibidem.

[10] VALLE, Rubén Hernández. Derecho Procesal Constitucional. San José, Costa Rica: Editorial Juricentro, 2001, p. 33, nº 3.

[11]  Ob. cit., p. 35, nº 3.

[12]  Encuesta sobre Derecho Procesal Constitucional. Lima: Jurista Editores, 2006.

[13] V. a esse respeito, nosso Direito Processual Constitucional, cit., Evolução do Direito Processual Constitucional, pp. 12/16, nº 6.

[14]  Ob. cit., México, Marcial Pons, 2008.  Da referida obra participaram, ao lado de juristas de vários países, os seguintes professores brasileiros: José Carlos Barbosa Moreira, Paulo Bonavides, Antônio Augusto Cançado Trindade, José Afonso da Silva, Ivo Dantas, Paulo Roberto de Gouvêa Medina, Ada Pellegrini Grinover e André Ramos Tavares.  Os trabalhos desses professores foram reunidos num volume único pela Editora Malheiros, de São Paulo, que os editou, sob o título Estudos de Direito Processual Constitucional – Homenagem brasileira a Héctor Fix-Zamudio em seus 50 anos como pesquisador do Direito, sob a coordenação do Prof. José Afonso da Silva, que escreveu a página de apresentação.  O livro traz, ainda, o prefácio da obra original, subscrito pelos seus coordenadores, Profs. Eduardo Ferrer Mac-Gregor e Arturo Zaldívar Lello de Larrea, além da biografia do homenageado, redigida pelo primeiro.

[15]  Na Costa Rica, há também uma Lei Geral da Administração Pública – verdadeiro Código de Direito Administrativo --, a Lei nº 6.227, de 02 de maio de 1978.  Essa lei, ao lado da que é comentada neste texto, entremostra o grau de evolução que atingiu o Direito Público naquele país da América Central.

[16]  Ob. cit., p. 123, Introducción.

[17] El nuevo Código Procesal Constitucional peruano, in Encuesta sobre Derecho Procesal Constitucional, cit., p. 187.

[18] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Direito Civil – Alguns Aspectos da  sua Evolução. Rio de Janeiro: Forense, 2001, pp. 90 , 103 e 105, passim.  Trecho transcrito à página 105.

Autor(es):

Curriculum:

Professor Emérito da Universidade Federal de Juiz de Fora, de cuja Faculdade de Direito foi Diretor; Conselheiro Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e ex-Presidente de sua Comissão Nacional de Ensino Jurídico.


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